domingo, 30 de agosto de 2015

Suicídio: aspectos sociais, históricos e religiosos

"Na Idade Média, por exemplo, o suicídio era compreendido como crime, porque lesava os interesses da Coroa: os bens do suicida eram confiscados e seu corpo era pendurado pelos pés, queimado, ou enfiado em tonéis e jogados em rios, etc, em uma espécie de punição social. No aspecto religioso, foi principalmente a partir de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), que a morte autoinflingida passou a ter uma conotação pecaminosa (NETTO, 2013). Muitas vezes os suicidas eram excomungados e privados de funerais religiosos (CASSORLA, 1984). Ainda hoje, a maioria das religiões têm tabus em relação à morte auto-inflingida – para os espiritualistas, por exemplo, acredita-se que os suicidas sofrem após a morte por sentirem seus corpos decompondo-se e após um longo e sofrido desprendimento da matéria em decomposição, eles seriam levados para um local referenciado em muitos livros psicografados como “Vale dos Suicidas” (SILVA e QUEIROS, 2010).  Para o catolicismo, o suicídio é um pecado grave, pois  “somos administradores e não os proprietários da vida que Deus nos confiou” (SILVA, 2011).

Ao final da Idade Média, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o poder médico passa a ocupar um lugar privilegiado no controle da sociedade, de maneira que, a partir de então, são os “médicos” que definem a negatividade da morte voluntária, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura (NETTO, 2013).

No contexto do Direito, podemos refletir acerca da intervenção  policial diante de uma ameaça de suicídio. Pode-se prender alguém que ameaça suicidar-se, não com o objetivo de puní-lo, mas para “protegê-lo de si mesmo”, pois a leitura que se faz em nossa sociedade é de que apenas alguém com sérios problemas psíquicos tentaria tirar a própria vida. Portanto, para evitar que essa pessoa tente se matar logo em seguida, a polícia pode optar por prendê-lo para entregá-lo às autoridades de saúde, “para que elas possam olhar por seu bem estar até que ele possa voltar a cuidar de si mesmo”. Ainda no contexto judicial, existem três possibilidades de prisão relacionadas ao suicídio: ao tentar matar-se, a pessoa pode acabar matando ou ferindo outra pessoa, ou ainda danificando propriedade alheia, o que é crime, portanto essa pessoa poderia vir a responder criminalmente pelo dano aos direitos alheios. É o caso do suicida que se atira e acaba caindo e destruindo a propriedade alheia, ou o suicida que abre o gás, causando uma explosão no prédio no qual mora, mas não morre. Na legislação brasileira, cometer suicídio não é crime, mas instigar, auxiliar ou induzir alguém a cometer suicídio é, se a pessoa de fato tentar se matar. É o caso das pessoas que fornecem a arma para que o suicida se mate ou das pessoas que gritam, incentivando para que o suicida se atire do alto do prédio. Instigar, auxiliar ou induzir alguém ao suicídio é um crime contra a vida, e é julgado pelo tribunal do júri (FOLHA DIREITO, 2013).

No contexto social, o suicida escolhe a forma de morte que vai ter e com isso faz um forte contraponto ao tabu da morte que impera em nossa sociedade – valorizamos a saúde,  a estética, o corpo perfeito, a eterna juventude. Ariès (2012) publicou em 1975 o livro “História da Morte no Ocidente”, com ensaios que apresentavam a história das transformações sobre a percepção social da morte. O autor observa que na Idade Média, a morte era naturalizada, aceita e integrada na vida comum dos indivíduos – ela fazia parte do ciclo vital e era aceita como tal. Culturalmente, podemos considerar que a evolução das sociedades ocidentais modernas fez com que a morte deixasse de ser vista como uma etapa de um processo natural e passasse a ser cerceada e combatida por profissionais especializados, ocorrendo principalmente dentro de hospitais. A morte passou a ser compreendida como fracasso – dos recursos médicos, de uma vida que deveria estender-se em plenitude infinitamente.  

A este respeito, Ariés (2012) observa:
Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade da felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento, mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estando no fundo da depressão. Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade, que é posta em questão, e a sociedade arrisca-se, então, a perder sua razão de ser (p. 89). 

Se a morte natural passa a ter esse peso, que dizer então do suicídio, que parece questionar com ainda mais força essa felicidade idealizada que nossa cultura nos impele a buscar? Passa a ser visto como uma morte inaceitável: 

Uma morte aceitável é uma morte que possa ser aceita ou tolerada pelos sobreviventes. Tem o seu contrário: a embarrassingly graceless dying, que deixa os sobreviventes embaraçados porque desencadeia uma emoção demasiado forte, e é a emoção o que é preciso evitar, tanto no hospital quanto na sociedade de um modo geral (Ariès, 2012, p. 87)."

- Trecho da dissertação "Cuidado, frágil: aproximações e distanciamentos de trabalhadores de um CAPS na atenção ao suicídio", de Luciana França Cescon (2015).

Referências:

ARIÈS, P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. [Ed. Especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.  

CASSORLA, R. M. S. O que é suicídio. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FOLHA DIREITO. Suicídio e crime. 12/06/2013. Disponível em:     http://direito.folha.uol.com.br/blog/suicdio-e-crimes. Acesso em abril/2015.

NETTO, N. B. Suicídio: uma questão de saúde pública e um desafio para a Psicologia Clínica. In:CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). O Suicídio e os Desafios para a Psicologia. Brasília: CFP, 2013.

SILVA, J.W.F. O suicídio segundo a igreja católica. 30/08/2011. Disponível em: http://coracaodejesusemaria.blogspot.com.br/2011/08/o-suicidio-segundo-igreja-catolica_31.html. Acesso em abril/2015.

SILVA, N. e QUEIROS, N. O que acontece com o suicida. 16/junho/2010. Disponível em: http://paradigmaespirita.blogspot.com.br/2010/06/o-que-acontece-com-o-suicida.html. Acesso em abril/2015.



quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Perdão, Aaron Swartz ----------------------------- Eliane Brum

A morte de um gênio da internet, aos 26 anos, é um marco trágico do nosso tempo. É hora de pensar sobre nossas ações – ou omissões.


 – Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar se questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: “Ok, agora vou trabalhar para uma empresa”. Depois que percebi que havia problemas fundamentais que eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer disso.

Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou por que fazia o que fazia, era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente na nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento que abre esta coluna, era uma luta política: ele queria mudar o mundo e acreditava que era possível.
[...]
Li em vários artigos que Aaron seria depressivo. Em alguns textos, a suposta depressão foi citada como causa de sua decisão, como se a doença pudesse estar isolada – e não associada aos possíveis abusos cometidos contra ele no curso do processo judicial. É evidente que qualquer pessoa, e especialmente se ela for saudável, sofreria com a perspectiva de passar as próximas três décadas na cadeia – mais ainda se isso significasse um tempo superior à toda a sua vida até então. Esta é uma possibilidade capaz de abater até o mais autoconfiante e otimista entre nós, o que não equivale a dizer que todos lidariam com esse pesadelo da mesma forma. Se é perigoso encontrar um culpado para uma escolha tão complexa quanto o suicídio, também é perigoso quando a depressão é vista como algo apartado da vida vivida – e a patologia é colocada a serviço da simplificação. Se as doenças falam do indivíduo, falam também do seu mundo e de seu momento histórico. 

Se Aaron Swartz encerrou a própria vida, esta foi a sua decisão. Tornar-se adulto é também bancar as suas escolhas – e, neste sentido, estar só. Digo isso para que a nossa dor não esvazie de protagonismo o último ato de Aaron, o que equivaleria a desrespeitá-lo. Aaron é responsável por sua escolha, por mais que ela possa ser lamentada. E só ele poderia afirmar por que a fez.
Isso não significa, porém, que vários atores do caso judicial que envenenou a vida de Aaron nos últimos dois anos, com aparentes excessos, não precisem também assumir responsabilidades e responder por suas respectivas escolhas.Um dos mentores de Aaron, Larry Lessig (escritor, professor de Direito da Universidade de Harvard, cofundador do Creative Commons) afirmou que ele tinha errado, mas considerou a acusação e a possível punição uma resposta desproporcional ao ato. Logo após a morte de Aaron, escreveu: “(Ele) partiu hoje, levado ao limite pelo que uma sociedade decente só poderia chamar de bullying”.
[...]
Ao ler sobre a morte de Aaron Swartz, lembrei de dois versos. Ao fim ou diante dele, apesar de todos os argumentos, é só a poesia que dá conta da tragédia. Um é do eternamente jovem Rimbaud (1854-1891): “Por delicadeza, perdi minha vida”. E o outro foi escrito por um Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) já velho: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer”.
Quando lemos o que Aaron Swartz escreveu, ouvimos o que disse, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: por que ele desistiu de nós, ele que acreditava tanto? Que mundo é esse que criamos, onde alguém como Aaron Swartz acredita não caber?
Então, é isso. Ele nos deixou sozinhos no mundo que legamos à sua geração. Entre os tantos feitos admiráveis deixados por Aaron em sua curta trajetória, ao morrer ele deixou também um outro legado: a denúncia do nosso fracasso.
Perdão, Aaron Swartz.


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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os cinco maiores arrependimentos dos pacientes terminais

"Recentemente foi publicado nos Estados Unidos um livro que tem tudo para se transformar em um best seller daqueles que ajudam muita gente a mudar sua forma de enxergar a vida. The top five regrets of the dying (algo como “Os cinco principais arrependimentos de pacientes terminais”) foi escrito por Bronnie Ware, uma enfermeira especializada em cuidar de pessoas próximas da morte. Para analisar a publicação, convidamos a Dra. Ana Cláudia Arantes – geriatra e especialista em cuidados paliativos do Einstein – que comentou, de acordo com a sua experiência no hospital, cada um dos arrependimentos levantados pela enfermeira americana. 

Confira abaixo.

 1. Eu gostaria de ter tido coragem de viver uma vida fiel a mim mesmo, e não a vida que os outros esperavam de mim “À medida que a pessoa se dá conta das limitações e da progressão da doença, esse sentimento provoca uma necessidade de rever os caminhos escolhidos para a sua vida, agora reavaliados com o filtro da consciência da morte mais próxima”, explica Dra. Ana Cláudia. “É um sentimento muito frequente nessa fase. É como se, agora, pudessem entender que fizeram escolhas pelas outras pessoas e não por si mesmas. Na verdade, é uma atitude comum durante a vida. No geral, acabamos fazendo isso porque queremos ser amados e aceitos. O problema é quando deixamos de fazer as nossas próprias escolhas”, explica a médica. “Muitas pessoas reclamam de que trabalharam a vida toda e que não viveram tudo o que gostariam de ter vivido, adiando para quando tiverem mais tempo depois de se aposentarem. Depois, quando envelhecem, reclamam que é quando chegam também as doenças e as dificuldades”, conta.

 2. Eu gostaria de não ter trabalhado tanto “Não é uma sensação que acontece somente com os doentes. É um dilema da vida moderna. Todo mundo reclama disso”, diz a geriatra. “Mas o mais grave é quando se trabalha em algo que não se gosta. Quando a pessoa ganha dinheiro, mas é infeliz no dia a dia, sacrifica o que não volta mais: o tempo”, afirma. “Este sentimento fica mais grave no fim da vida porque as pessoas sentem que não têm mais esse tempo, por exemplo, pra pedir demissão e recomeçar”. 


3. Eu gostaria de ter tido coragem de expressar meus sentimentos “Quando estão próximas da morte, as pessoas tendem a ficar mais verdadeiras. Caem as máscaras de medo e de vergonha e a vontade de agradar. O que importa, nesta fase, é a sinceridade”, conta. “À medida que uma doença vai avançando, não é raro escutar que a pessoa fica mais carinhosa, mais doce. A doença tira a sombra da defesa, da proteção de si mesmo, da vingança. No fim, as pessoas percebem que essas coisas nem sempre foram necessárias”. “A maior parte das pessoas não quer ser esquecida, quer ser lembrada por coisas boas. Nesses momentos finais querem dizer que amam, que gostam, querem pedir desculpas e, principalmente, querem sentir-se amadas. Quando se dão conta da falta de tempo, querem dizer coisas boas para as pessoas”, explica a médica. 


 4. Eu gostaria de ter mantido contato com meus amigos “Nem sempre se tem histórias felizes com a própria família, mas com os amigos, sim. Os amigos são a família escolhida”, acredita a médica. “Ao lado dos amigos nós até vivemos fases difíceis, mas geralmente em uma relação de apoio”, explica. “Não há nada de errado em ter uma família que não é legal. Quase todo mundo tem algum problema na família. Muitas vezes existe muita culpa nessa relação. Por isso, quando se tem pouco tempo de vida, muitas vezes o paciente quer preencher a cabeça e o tempo com coisas significativas e especiais, como os momentos com os amigos”. “Dependendo da doença, existe grande mudança da aparência corporal. Muitos não querem receber visitas e demonstrar fraquezas e fragilidades. Nesse momento, precisam sentir que não vão ser julgados e essa sensação remete aos amigos”, afirma.


5. Eu gostaria de ter me deixado ser mais feliz “Esse arrependimento é uma conseqüência das outras escolhas. É um resumo dos outros para alguém que abriu mão da própria felicidade”. “Não é uma questão de ser egoísta, mas é importante para as pessoas ter um compromisso com a realização do que elas são e do que elas podem ser. Precisam descobrir do que são capazes, o seu papel no mundo e nas relações. A pessoa realizada se faz feliz e faz as pessoas que estão ao seu lado felizes também”, explica. “A minha experiência mostra que esse arrependimento é muito mais dolorido entre as pessoas que tiveram chance de mudar alguma coisa. As pessoas que não tiveram tantos recursos disponíveis durante a vida e que precisaram lutar muito para viver, com pouca escolha, por exemplo, muitas vezes se desligam achando-se mais completas, mais em paz por terem realmente feito o melhor que podiam fazer. Para quem teve oportunidade de fazer diferente e não fez, geralmente é bem mais sofrido do ponto de vista existencial”, alerta. Dica da especialista “O que fica bastante claro quando vejo histórias como essas é que as pessoas devem refletir sobre suas escolhas enquanto têm vida e tempo para fazê-las”. “Minha dica é a seguinte: se você pensa que, no futuro, pode se arrepender do que está fazendo agora, talvez não deva fazer. Faça o caminho que te entregue paz no fim. Para que no fim da vida, você possa dizer feliz: eu faria tudo de novo, exatamente do mesmo jeito”. De acordo com Dra. Ana Cláudia, livros como este podem ajudar as pessoas a refletirem melhor sobre suas escolhas e o modo como se relacionam com o mundo e consigo mesmas, se permitindo viver de uma forma melhor. “Ele nos mostra que as coisas importantes para nós devem ser feitas enquanto temos tempo”, conclui a médica."


Publicado em janeiro/2012. http://www.einstein.br/einstein-saude/bem-estar-e-qualidade-de-vida/Paginas/os-cinco-maiores-arrependimentos-dos-pacientes-terminais.aspx?fb_action_ids=4166233028708&fb_action_types=og.likes&fb_source=aggregation&fb_aggregation_id=288381481237582 






domingo, 9 de agosto de 2015

Morrendo na primeira pessoa _________Eliane Brum


Depois de se tornar interdita e silenciada no século 20, a morte ganha cada vez mais espaço em narrativas confessionais de notáveis e de anônimos

Publicado em 03 de agosto de 2015

Em 24 de julho, Oliver Sacks, escritor, neurologista e um dos pensadores mais interessantes do nosso tempo, escreveu um novo artigo sobre o seu morrer, na página de Opinião do The New York Times. Em fevereiro, ele tinha anunciado que estava com câncer no fígado, sem possibilidade de cura, em um texto belíssimo sobre a vida, que foi traduzido e publicado no mundo inteiro. Agora, aos 82 anos, Sacks começa a se sentir nauseado e enfraquecido pela doença, mas não menos encantado e curioso com a existência. Ele segue esperando com alegria a chegada das revistas científicas, ansioso pelas descobertas sobre um universo que o fascina. Semanas atrás, ele estava no campo, longe das luzes da cidade, quando se deparou com a inteireza monumental do céu “polvilhado de estrelas”. Sacks concluiu: “Esse esplendor celeste de imediato me fez perceber o quão pouco era o tempo e a vida que me restava. Minha percepção da beleza do céu, da eternidade, era inseparável da minha percepção da transitoriedade – e da morte”. Contou então seu sentimentos aos amigos que o acompanhavam, Kate e Allen, dizendo: “Eu gostaria de ver esse céu novamente quando estiver morrendo”. E os amigos garantiram que fariam com que pudesse ver as estrelas uma vez mais.

Ao nos contar sobre o seu morrer, um morrer vivo, no qual a experiência de chegar ao fim é mais uma novidade para um homem curioso com o mundo e com a existência, Oliver Sacks tornou-se um dos sinalizadores de que algo fundamental está mudando na nossa época. E de forma bastante rápida, já que nosso tempo histórico é acelerado. Embora o silêncio sobre a morte, a doença e o luto ainda persista na vida cotidiana – e talvez seja ainda o que se impõe para a maioria das pessoas –, já não vivemos a morte “envergonhada” ou “clandestina” que se estabeleceu no século 20. O doente terminal que finge que não está morrendo, para não alarmar nem a família nem a equipe médica, pode estar começando a se tornar um espécime em extinção. A morte começa a ficar desavergonhada – e especialmente confessional, bem ao tom desse momento em que se narra tudo nas redes sociais.

A história humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em diferentes períodos históricos, olhou para a morte e lidou com ela. O trabalho mais completo sobre esse tema possivelmente ainda seja o do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), primeiro em um livro chamado História da morte no Ocidente e, depois, numa obra maior, intitulada O homem diante da morte. Nesta análise, o historiador mostra como, no século 20, a morte passou a ser escondida e calada. Não mais um evento público, mas uma espécie de não acontecimento. Na sociedade tecnicista era necessário que a morte fosse ocultada entre as paredes de um hospital, o mais asséptica possível, e imediatamente esquecida. Essa mentalidade ajuda a explicar por que, até hoje, alguém que perde aqueles que ama tem legalmente um tempo curtíssimo para se ausentar do trabalho e começar a elaborar o seu luto. Quando se espera que a ciência prolongue a vida a qualquer preço e a juventude torna-se um valor em si, a morte passa a ser um fracasso que deve ser escamoteado.

No século 20, o fim da vida tornou-se algo a ser ignorado e, assim, não precisava nem ser superado, já que o melhor seria fingir que nem mesmo tinha acontecido. “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras”, escreveu Philippe Ariès. A morte tornara-se quase contagiosa, e aquele que morria o portador de uma doença/má notícia cuja contaminação deveria ser evitada a todo custo pelos vivos.

Outro pensador, o antropólogo britânico Geoffrey Gorer (1905-1985), escreveu um ensaio sobre o que chamou de Pornografia da Morte. “Hoje a morte e o luto são tratados com o mesmo pudor que os impulsos sexuais há um século”, afirmou. A interdição do sexo, na era vitoriana, tinha sido substituída pela interdição da morte, no século 20. A morte teria se tornado obscena e feia e, portanto, deveria ser escondida. E o luto, circunscrito ao âmbito privado, havia se tornado tão secreto e individual como a masturbação.

Como acontece tantas vezes, a arte antecipou a interpretação da sua época. Essa mudança no olhar sobre a morte consolidada no século 20 já podia ser detectada, no final do século 19, na pequena obra-prima de Tolstói: A morte de Ivan Ilitch. Em um seu livro Educação para a morte – Temas e reflexões, a psicóloga brasileira Maria Júlia Kovács assim analisa a novela do escritor russo: “Ninguém quer falar sobre o que está acontecendo com o doente, nem ele próprio, que sofre, geme, mas nada diz. Os familiares também sofrem, não sabem o que fazer, mas fingem que está tudo bem”. Apesar de todos tentarem banalizar o acontecimento, transformando-o num não acontecimento, o doente, embora nada diga, sabe o que vive.

O século 21, este que testemunhamos nascer, começa a engendrar um outro olhar sobre a morte, cujos sinais já podiam ser percebidos nas últimas décadas do anterior. A história, como se sabe, é movimento e conflito. O próprio surgimento do conceito de “Hospice” e da prática dos “cuidados paliativos”, nos anos 60 do século passado, com a ideia de que cuidar é mais importante do que curar e de que é preciso escutar aquele que vive o seu morrer, começou a colocar em xeque o silenciamento da morte.

Hoje, não são apenas as séries de TV e os filmes no cinema que passaram a abordar a morte, a doença e o envelhecimento com frequência cada vez maior. Neste novo olhar sobre o fim da vida, a internet, com as redes sociais, tem desempenhado um papel central e crescente. Se a literatura nunca deixou de ter a morte como tema, o morrer vem tornando-se uma narrativa confessional, de não ficção, escrita na primeira pessoa do singular.

Oliver Sacks não foi o primeiro a escrever sobre o fim da vida neste século. Longe disso. Em 2005, a jornalista Joan Didion publicou um livro, O ano do pensamento mágico, em que contava sobre a morte do marido e o seu luto. Logo no início faz uma síntese sobre a condição humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Essa mistura de narrativa confessional com investigação jornalística entrou para a lista dos mais vendidos em vários países, inclusive no Brasil. Mais tarde, em 2011, Didion lançaria Noites Azuis, sobre a morte da única filha, seu próprio envelhecimento e sua solidão. Este último livro é a história da mulher que restou, a narrativa de quem se descobriu sozinha para testemunhar o próprio fim. Portanto, um relato ainda mais duro e perturbador, que parece ter sido mais difícil para os seus leitores. Didion agora se vê às voltas com formulários de hospital, onde fazem a ela uma pergunta que não pode responder: quem chamar numa hora de emergência? Já não há.

Em 2008, o escritor e analista político David Rieff lançou um livro sobre como foi testemunhar o fim da vida da mãe, a pensadora americana Susan Sontag, morta pelo terceiro câncer de sua trajetória quatro anos antes, aos 71. David deu à obra um título pungente: Nadando em um mar de morte – memórias de um filho. Susan Sontag publicou livros fundamentais sobre o tema. Em Metáforas da doença, escrito quando ela já tinha lidado com um câncer no seio e o superado, Sontag analisa como a tuberculose foi a morte romântica, no século 19, e o câncer, doença-símbolo do século 20, a morte “suja”. Defende também que o câncer seja tratado como uma doença, loteria genética, e não como uma ideia que chegou a ser muito popular e ainda persiste em alguns meios, de que a pessoa teria “feito” o seu câncer ou o “atraído”, por repressões sexuais e questões psicológicas mal resolvidas.

Susan Sontag, nas palavras do filho, ao mesmo tempo sentia pavor da morte e obsessão pela morte. Morreu sem jamais se reconciliar com a ideia de morrer. Mesmo sendo informada pelos médicos que um transplante de medula teria escassas chances de êxito no seu caso, ela escolheu fazê-lo. Quando soube que a cirurgia fracassara, estava presa a 300 metros de tubos, por onde eram injetadas as substâncias que a mantinham viva, e perguntando o que mais os médicos podiam fazer por ela. Morreu coberta de hematomas e feridas, esperando “vencer” o câncer, sem se despedir de ninguém e sem permitir que se despedissem dela. Foi a sua escolha, só ela poderia fazê-la. “Era impossível até eu dizer que a amava, porque fazer isso teria significado dizer: ‘você está morrendo’”, escreveu David Rieff, num livro que enfrenta as perguntas espinhosas sobre o lugar de um filho diante do morrer da mãe, na singularidade de cada história, sempre particular e irrepetível.

Mortality, aqui no Brasil traduzido como Últimas palavras, é baseado nas colunas publicadas na revista americana Vanity Fair pelo escritor, jornalista e grande polemista Christopher Hitchens, um feroz defensor do ateísmo que se manteve fiel a suas ideias até o fim. Ele morreu de câncer em dezembro de 2011, aos 62 anos, e o livro foi lançado em 2012. Com o mesmo desassombro e a ironia que sempre caracterizaram seus artigos, Hitchens discorreu sobre a vida no que chamou causticamente de “Tumorlândia”.

No estilo que o fez angariar tanto admiradores quanto inimigos ao longo de uma extensa coleção de polêmicas, ele sugeriu a criação de um “Manual de Etiqueta do Câncer”, destinado “aos doentes e também aos simpatizantes”. Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”. É um livro tão vivo este em que Christopher Hitchens escreve sobre o seu morrer que, ao terminá-lo, sentimos imensa saudade do seu autor.

Mas o marco deste início de século, na escrita sobre a morte e especialmente sobre o câncer, é possivelmente o livro de Randy Pausch. Nenhuma obra sobre o tema foi tão festejada e popular quanto A lição final. E não por acaso. Morto de câncer pancreático em 2008, o professor universitário Randy Pausch construiu uma narrativa bem ao gosto da cultura americana, marcada pela divisão entre losers (perdedores) e winners (vencedores). A sua era uma escrita de “superação” da adversidade, da “batalha” contra a doença, uma jornada do herói adaptada ao tão difundido discurso no senso comum e nos meios médicos do “guerreiro que lutou até o fim a guerra contra o câncer”. Randy morreu, mas como um “vencedor”, já que havia tornado seu câncer um “case” de sucesso. Não pôde “vencer” a doença, mas, naquilo que parecia essencial para ele e para a sociedade em que vivia, vencera. Naquele momento, era bastante revelador que, depois de tanto silêncio, a mais comentada era uma morte “bem-sucedida”, materializada num best-seller internacional que rendeu milhões de dólares e transformou seu autor numa celebridade.

Tudo indicava que esta poderia ser a linha narrativa preponderante do nosso tempo: a morte a serviço da superação e do sucesso, da indústria e do culto a celebridades. Falada, sim, mas apenas para mais uma vez encobrir a dor e os conflitos da condição humana. Não é o que tem acontecido, como provam a escrita de Christopher Hitchens, de Joan Didion e do próprio Oliver Sacks, entre vários outros. Não há uma forma “certa” nem “errada” de falar sobre a doença e a morte, seja a própria ou a de quem amamos. Do mesmo modo que não há nenhuma narrativa acima de um debate honesto sobre o que diz de sua época e sobre como a influencia, mesmo sendo seu autor alguém que está morrendo.

A morte é lambuzada de vida e de humanidades. Há tantas formas de pensar sobre ela quanto vivedores e morredores. A beleza, mesmo quando brutal, é quando essas narrativas são capazes de enfrentar a complexidade deste momento, com todos os sentimentos ambíguos e as contradições que o povoam. Seria uma pena, afinal, reduzir um momento tão abissal quanto inescapável a um manual pobre do “morrer bem”. Como na frase que adoro: “A morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”.

Minha expectativa de que estamos num novo momento no que se refere ao olhar sobre a morte aumentou ao acompanhar a história de Tig Notaro, 44 anos. Comediante de stand-up, a americana Tig pensava em ter um filho, em 2012, quando primeiro foi atingida por uma infecção que quase a matou. Logo depois da alta do hospital, perdeu a mãe, que nas suas palavras era a pessoa que mais a enxergava, compreendia e incentivava. Tig descobriu-se sem chão. Mas não era tudo. Em seguida, ela soube que tinha câncer no seio.

Tig estava às vésperas de um show. E agora, deveria fazê-lo? A humorista pensou que, afinal, depois de tudo o que acabara de viver, era muito ridículo ter ainda por cima um câncer. Subiu ao palco e fez um espetáculo considerado histórico.

–Hello, good evening, hello! Eu tenho câncer. Como vão vocês? Todo mundo se divertindo? Fui diagnosticada com um câncer...

Ainda que possa parecer apenas bizarro, quando aqui reproduzido, assistindo ao show percebemos que Tig conseguiu fazer algo sofisticado e profundo com o câncer e o medo de morrer: conseguiu fazer humor. Ela não negava a dor da sua condição, mas a usava para produzir arte, reflexão e... riso. Sem que tivesse planejado essa performance, sua carreira deu um salto. Logo Tig estava na capa de revistas, em talk shows na TV.

Neste ponto, eu temi que ela poderia se tornar uma espécie de “celebridade do câncer” e nunca mais pudesse falar de outra coisa. Mas, se o que fez com a doença a colocou num outro lugar, e este é um fato, o caminho de Tig parece ser o de colocar o câncer, o luto pela mãe, os fracassos reprodutivos e também o sucesso no contexto de uma vida com um pouco de tudo, às vezes bastante de alguma coisa, mas não monotemática.

Essa escolha, pelo menos, é o que aparece num documentário sobre o seu percurso, lançado em julho deste ano pelo Netflix, chamado apenas “Tig”. A dela é uma história em aberto, como qualquer outra, e a vimos frágil e confusa diante do futuro. Acompanhamos a artista em seu dilema sobre fazer ou não um tratamento reprodutivo, na tentativa de ter um filho, e arriscar-se a aumentar as chances de o câncer voltar por conta dos hormônios; compartilhamos sua ansiedade para que o embrião vingue numa barriga de aluguel, assim como o seu amor por uma outra mulher, que num primeiro momento a rejeita, porque até então só tinha tido relacionamentos heterossexuais. E testemunhamos também sua insegurança sobre com que material trabalhar em seus shows, depois de ter alcançado um nível tão paradigmático ao levar o câncer para o palco.

Mas talvez o momento-síntese da narrativa de Tig sobre o câncer e a possibilidade de morrer seja uma cena que não está no documentário, apesar de mencionada. Em novembro de 2014, Tig tirou a camisa no palco, mostrando a ausência do que a doença lhe arrancou, numa mastectomia dupla sem cirurgia de reconstrução, e as suas cicatrizes. Até aí, poderia ser apenas uma espécie de “performance de choque”, um truque para ganhar a plateia. Depois do impacto inicial, porém, o público acolheu e superou essa nudez assinalada pela doença e pela condição humana, graças ao talento de Tig.

Como disse o crítico Jason Zinoman: “Tig Notaro mostra que o humor não apenas consegue transformar tragédia em comédia, como também é capaz de desviar a atenção das pessoas da imagem mais vendida e objetificada da cultura popular: o corpo feminino nu”. Ali estava alguém dolorosa e alegremente viva que não negava suas marcas. Essa transcendência coletiva foi um grande momento de vida, com toda a incerteza e a fragilidade que é viver como um ser que se sabe para a morte.

Minha aposta é de que o mais fascinante deste novo olhar sobre a finitude humana possivelmente ainda virá. E virá não por aqueles que já têm um lugar de escuta, mas pelos anônimos que começam a produzir narrativas na internet sobre o envelhecimento, a doença e a morte. Assim como as redes sociais vêm produzindo tanto sobre tudo – e não só discursos de ódio –, também autorizaram um dizer que revela como cada um se coloca diante da mortalidade. Se a internet permitiu que aqueles que comungam de desejos sexuais considerados fora dos padrões se encontrassem e pudessem viver sua expressão de forma consensual, entre adultos, também começa a se estabelecer como um lugar de confissão e de troca sobre luto, perdas e morte. Um espaço para narrativas múltiplas, para viveres múltiplos do morrer. Quando uso a palavra “fascinante”, não estabeleço se é bom ou mau, apenas que estamos diante de algo instigante e talvez surpreendente, exatamente porque contraditório.

Meses atrás, a carta de uma leitora de 78 anos no Painel do Leitor da Folha de S. Paulo me impactou. Ao discordar da abordagem de um artigo sobre o desejo e o envelhecimento, ela assim se colocou: “Quem leu Simone de Beauvoir vai me entender. São inócuas as ‘cenouras’, surpresas ou prazeres externos quando você tem a noção de que, por dentro, está apodrecendo aos poucos. Chegar a esta constatação é de uma crueldade ímpar. Não há sorriso de neto que consiga esvanecê-la. Acima de tudo, não quero mais lidar com essas mazelas e, para isso, estou em plena e ocupada fase de desapego. Para mim, chega. E o meu direito de não mais querer viver? Onde fica?”.

O que importa aqui não é concordar ou discordar, até porque cada um sabe de sua dor e de suas escolhas. O fato é que já é possível dizer e já existe espaço para ser escutado, mesmo que o que você tenha para dizer esteja fora do senso comum e da publicidade sobre a “terceira idade”, fora do manual e dos discursos edificantes ou das “lições de vida” bem comportadas.

Em um artigo interessante sobre esse fenômeno das narrativas de morte em tempo real, o jornalista Lee Siegel lembra do depoimento de uma mulher na coluna Private Lives (Vidas Privadas), do The New York Times, marcado por uma crueza sem qualquer pudor: “Por falar de perdas, não perdi somente meu marido e minha vida, perdi também os meus cabelos. Recentemente um policial me mandou encostar o carro por ficar parada. O tráfego estava sendo redirecionado, mas eu havia congelado e retinha uma longa fila. Levantei as mãos, esperando ser algemada, dizendo que não há nada que você possa fazer comigo que seja pior do que já foi feito. Ele disse: ‘Que história é essa, madame?’. Eu disse: ‘Não tenho marido, não tenho amigos, não tenho cabelo’”.

“Vamos falar sobre o luto?” é uma das plataformas lançadas na internet em 2015
O mesmo Times tem um outro espaço, The End, com depoimentos sobre o morrer, o luto e sobre o cuidar de quem tem uma doença. No Brasil, a Folha de S. Paulo criou, em outubro de 2014, um blog chamado Morte Sem Tabu, produzido pela dramaturga Camila Appel. Por todo o país, usando as redes sociais, surgiram e surgem grupos para compartilhar experiências de perda, como o Mães Sem Nome, que reúne pessoas de diferentes classes sociais e histórias de vida: “Quando um (a) filho (a) perde seus pais fica órfão (ã). Quando perdemos o marido/esposa ficamos viúvos (as). Quando a mãe perde seu filhos, não tem nome”. Em junho deste ano, sete amigas que perderam pessoas que amavam lançaram uma plataforma na internet para a escuta deste momento tão profundo e em geral solitário: “Vamos falar sobre o luto?”. Os muros de silenciamento rompem-se por todos os lados.

Em 2008, acompanhei como repórter os últimos 115 dias de vida de uma mulher com um câncer incurável. Também testemunhei por meses a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos de São Paulo, liderada por uma médica especialíssima, Maria Goretti Maciel, na qual se acreditava mais na largura da vida do que no seu comprimento: mais importante do que prolongar a vida a qualquer preço, em geral um preço alto, era garantir a qualidade da vida que restava. Assim como mostrava-se fundamental respeitar e acolher o modo como cada um escolhe viver esse momento, sem dogmas nem julgamentos. Não era um lugar em que a humanidade era dividida entre “perdedores” e “vencedores”, nem o tratamento da doença, em geral câncer, era encarado como uma “guerra”. O fundamental era garantir as condições para que cada um pudesse escolher como viver o tempo que tinha, sem tratamentos inúteis, dolorosos e invasivos, cercados por quem amava ou mesmo solitário, caso este fosse o seu desejo. Do como viver a sua morte, só sabe aquele que a vive.

Naquela ocasião, ao decidir contar a morte em geral silenciada, aquela causada pela doença e pela velhice, calada exatamente por ser a da maioria – e não a morte violenta, provocada por crimes, acidentes e catástrofes, mais comum à narrativa jornalística –, fui seguidas vezes acusada de “mórbida”. Eu retrucava, dizendo que era o contrário. Mórbido era aquilo que nos paralisava, o medo que não podia ser nomeado ou pronunciado.

Ao calarmos sobre o envelhecimento, a doença e a morte, perdíamos uma oportunidade insubstituível para pensar sobre a vida – e em especial sobre o tempo. Eu tinha sido transformada para sempre por uma frase de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que me permitiu contar o seu morrer, num enorme ato de confiança. Logo no nosso primeiro encontro, ela, que acabara de se aposentar e tinha começado a viver aventuras até então adiadas, disse: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Sou imensamente grata por esta frase, que multiplicou a largura da minha vida.

Hoje, passados menos de dez anos, acredito que não seria mais acusada de “mórbida”. Não tanto, pelo menos. Homens e mulheres anônimos começaram a dizer de si de forma desassombrada. Não sei o que escutaremos nem o quanto esses tantos dizeres vão influenciar nossa forma de encarar a finitude de nossa condição. Mas essa possibilidade de falar e de ser escutado também sobre o envelhecimento, a doença, a perda e a morte me encanta. Espero apenas que continue existindo espaço não para o silenciamento, esse ato que nos reprime e aniquila, mas para o silêncio daqueles que preferem se recolher dentro de si e da casa e nada dizer. Que falar e “confessar” não vire um novo imperativo ou dogma. Que exista espaço para todas as formas de ser, viver e morrer.

Mas a interrogação que mais me move neste momento é: o que diremos agora que podemos dizer?

Escutar o outro é arriscar-se ao outro. É viver.


quarta-feira, 5 de agosto de 2015

"Na busca desenfreada pela satisfação imediata e a qualquer preço, impõe-se um novo dever. Ser feliz tornou-se obsessão.
Pascal Bruckner expõe sua opinião sobre a felicidade, denunciando a fragilidade e a crueldade de uma sociedade que transformou o prazer 
em ideal coletivo e obrigatório:

"No mundo ocidental quem não é feliz se sente excluído e fracassado. 
A felicidade é extremamente individual e efêmera por definição. Por isso as pessoas obcecadas em conquistá-la, como uma propriedade, sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida. 
[...] Há sempre bastante o que desejar, descobrir, amar ...
É preciso nos deixar surpreender e abraçar pelo inesperado - 
o fragmento que nos pode aquecer, simplesmente!"

- Mente e Cérebro (julho/2007)


domingo, 2 de agosto de 2015


Por que o Japão tem uma taxa de suicidios tão alta?

Suicídio é principal causa de morte entre homens japoneses com idades entre 20 e 40 anos.

No ano passado, no Japão, mais de 25 mil pessoas cometeram suicídio. Isso dá uma média de 70 por dia. A maioria delas, homens.
Estes números não representam a maior taxa de suicídio entre países desenvolvidos - o título ainda cabe à Coreia do Sul, com uma média anual de 28,9 suicídios por 100 mil habitantes. Mas estão muito acima de outras nações ricas.
O índice japonês de 18,5 suicídios para cada 100 mil habitantes é, por exemplo, três vezes o registrado no Reino Unido (6,2) e 50% acima da taxa dos Estados Unidos (12,1), da Áustria (11,5) e da França (12,3).

O assunto voltou a ter destaque com a auto-imolação de um homem de 71 anos em um trem bala na última terça-feira.
O que fez um pacato idoso a se matar desta forma em um vagão lotado?
Conforme ele derramava o líquido inflamável sobre si mesmo, teria se afastado de outros passageiros, segundo testemunhas, para não colocá-las em perigo. Algumas disseram que ele tinha lágrimas nos olhos ao fazer isso.
Agora, conforme seu passado começa a ser investigado pela mídia japonesa, surgem sinais de se tratar de um homem no limite. Ele vivia sozinho e não tinha emprego. Passava os dias coletando latas de alumínio para vendê-las para reciclagem.
Vizinhos disseram a repórteres que o ouviram quebrar uma janela ao se trancar do lado de fora de seu apartamento dilapidado.
Outros afirmaram raramente tê-lo visto fora de casa, mas ouviam com frequência a televisão ligada. Pobre, de idade avançada e sozinho. É um caso bastante familiar.

"O isolamento é o fator número um que antecede a depressão e o suicídio", diz o psicólogo Wataru Nishida, da Universidade Temple, em Tóquio.
"Hoje em dia, são cada vez mais comuns histórias de idosos que morrem sozinhos em seus apartamentos. Eles estão sendo negligenciados. Os filhos costumavam cuidar de seus pais no Japão, mas isso não ocorre mais."
'Suicídio em nome da honra'

Muitas mortes de idosos solitários podem ser suicídios
Muitas pessoas costumam citar uma antiga tradição de "suicídio em nome da honra" para a alta taxa do país.
Elas citam, por exemplo, a prática samurai de cometer "seppuku" e dos jovens pilotos "kamikazes" de 1945 para explicar por que razões culturais tornam os japoneses mais propensos a tirar suas próprias vidas.
De certa forma, Nishida concorda com este ponto de vista: "O Japão não tem história de Cristianismo. Então, o suicídio não é um pecado. Na verdade, alguns encaram como uma forma de assumir responsabilidade por alguma coisa".
Ken Joseph, que trabalha no serviço de ajuda a suicidas do país, concorda. Ele diz que sua experiência ao longo dos últimos 40 anos mostra que idosos que têm problemas financeiros podem ver o suicídio como uma saída para esta situação.
"Os seguros de vida no Japão são muito ambíguos quanto ao pagamento por suicídio. Então, quando uma pessoa se mata, o seguro costuma ser pago", afirma Joseph.
"Os idosos vivem sob uma pressão intolerável e acreditam que o melhor que podem fazer é tirar suas vidas para sustentar sua família."
Pressão financeira
Dificuldade em encontrar empregos estáveis gera ansiedade e depressão
Por causa disso, alguns especialistas acreditam que a taxa de suicídios no Japão é na verdade muito mais alta do que os registros mostram.
Muitos casos de idosos que morrem sozinhos nunca chegam a ser completamente investigados pela polícia. De acordo com Joseph, a prática quase universal no país de cremar os corpos também significa que qualquer evidência de um suicídio é rapidamente destruída.
Mas não são apenas os idosos homens com problemas financeiros que estão tirando suas vidas. O índice vem crescendo rapidamente entre homens jovens, fazendo com que o suicídio seja a principal causa de morte entre os homens japoneses com idades entre 20 e 40 anos.
E as evidências apontam que estes jovens estão se matando porque perderam completamente a esperança e são incapazes de pedir ajuda.

Os números começaram a crescer após a crise financeira asiática de 1998 e aumentaram novamente após a crise financeira mundial de 2008.
Especialistas acreditam que estes aumentos estão ligados a um crescimento das "condições precárias de emprego", em que jovens são contratados por curtos períodos de tempo.
O Japão já foi a terra do emprego vitalício, mas, enquanto muitas das pessoas mais velhas ainda desfrutam de estabilidade e benefícios generosos, quase 40% dos jovens japoneses não conseguem encontrar empregos estáveis.
A ansiedade causada por problemas financeiros e a instabilidade no trabalho é reforçada pela cultura japonesa de não reclamar. "Não há muitas formas de expressar raiva ou frustração no Japão", diz Nishida.
"Esta é uma sociedade muito orientada por regras. Jovens são moldados para se encaixar em nichos existentes. Não há como alguém expressar seus sentimentos vendadeiros. Se são pressionados por seu chefe ou se deprimem, alguns acham que a única saída é morrer."
Isolamento tecnológico
Tecnologia vem acentuando isolamento social de jovens japoneses
A tecnologia pode estar piorando esta situação, ao aumentar o isolamento dos jovens. O Japão é famoso por uma condição conhecida como "hikkimori", um tipo de isolamento social grave.
O jovem nesta situação pode se fechar completamente ao mundo, permanecendo em um quarto por meses ou mesmo anos. A maioria deles são homens.
Mas esta é apenas a forma mais extrema de uma atual perda generalizada de socialização cara a cara. Uma pesquisa recente sobre o comportamento dos jovens em relacionamentos e sexo trouxe resultados impressionantes.
Publicada em janeiro pela Associação de Planejamento Familiar do Japão, o estudo indicou que 20% dos homens com idades entre 25 e 29 anos tinham pouco ou nenhum interesse em relações sexuais. Nishida aponta para a internet e a influência da pornografia online sobre isso.
"Os jovens japoneses têm muito conhecimento, mas pouca experiência de vida. Não sabem como expressar suas emoções", afirma Nishida.
"Eles esqueceram como é tocar uma pessoa. Quando pensam sobre sexo, podem ficar ansiosos e sem saber como lidar com isso."
E, quando jovens se encontram isolados e deprimidos, eles têm poucos lugares aos quais recorrer. Doenças mentais são um tabu no país, e a depressão é geralmente pouco compreendida. Quem sofre deste problema, normalmente tem medo de falar sobre o assunto.

Sistema de saúde ruim
Jovens japoneses têm muito conhecimento, mas pouca experiência de vida
O sistema de saúde para doenças mentais também é ruim. Faltam psiquiatras, e não há qualquer tradição destes profissionais trabalharem junto com psicólogos.
Pessoas com problemas mentais podem receber prescrições de medicamentos psicotrópicos fortes, mas, com frequência, isso não vem acompanhado de um acompanhamento psicológico.
O próprio mercado de psicologia do Japão é uma bagunça. Ao contrário de outros países, não há um sistema de ensino estabelecido pelo governo nem para qualificação profissional de psicólogos clínicos.
Qualquer um pode ser apresentar como tal, e é muito difícil saber se quem presta este tipo de serviço sabe o que está fazendo.
Não é um bom cenário, ainda mais porque, apesar da taxa de suicídio ter começado a declinar nos últimos três anos, ela ainda é muito alta.
Nishida diz que o Japão agora começa a debater mais sobre doenças mentais e não tratar isso como algo assustador e estranho que afeta apenas a alguns poucos. Mas o especialista acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido.
"Quando há uma discussão na TV sobre problemas mentais no Japão, eles ainda falam como se depressão fosse sinônimo de suicídio. Isso precisa mudar."

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb?ocid=socialflow_twitter%3FSThisFB&fb_ref=Default