"Na Idade Média, por exemplo, o suicídio era compreendido como crime, porque lesava os interesses da Coroa: os bens do suicida eram confiscados e seu corpo era pendurado pelos pés, queimado, ou enfiado em tonéis e jogados em rios, etc, em uma espécie de punição social. No aspecto religioso, foi principalmente a partir de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), que a morte autoinflingida passou a ter uma conotação pecaminosa (NETTO, 2013). Muitas vezes os suicidas eram excomungados e privados de funerais religiosos (CASSORLA, 1984). Ainda hoje, a maioria das religiões têm tabus em relação à morte auto-inflingida – para os espiritualistas, por exemplo, acredita-se que os suicidas sofrem após a morte por sentirem seus corpos decompondo-se e após um longo e sofrido desprendimento da matéria em decomposição, eles seriam levados para um local referenciado em muitos livros psicografados como “Vale dos Suicidas” (SILVA e QUEIROS, 2010). Para o catolicismo, o suicídio é um pecado grave, pois “somos administradores e não os proprietários da vida que Deus nos confiou” (SILVA, 2011).
Ao final da Idade Média, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o poder médico passa a ocupar um lugar privilegiado no controle da sociedade, de maneira que, a partir de então, são os “médicos” que definem a negatividade da morte voluntária, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura (NETTO, 2013).
No contexto do Direito, podemos refletir acerca da intervenção policial diante de uma ameaça de suicídio. Pode-se prender alguém que ameaça suicidar-se, não com o objetivo de puní-lo, mas para “protegê-lo de si mesmo”, pois a leitura que se faz em nossa sociedade é de que apenas alguém com sérios problemas psíquicos tentaria tirar a própria vida. Portanto, para evitar que essa pessoa tente se matar logo em seguida, a polícia pode optar por prendê-lo para entregá-lo às autoridades de saúde, “para que elas possam olhar por seu bem estar até que ele possa voltar a cuidar de si mesmo”. Ainda no contexto judicial, existem três possibilidades de prisão relacionadas ao suicídio: ao tentar matar-se, a pessoa pode acabar matando ou ferindo outra pessoa, ou ainda danificando propriedade alheia, o que é crime, portanto essa pessoa poderia vir a responder criminalmente pelo dano aos direitos alheios. É o caso do suicida que se atira e acaba caindo e destruindo a propriedade alheia, ou o suicida que abre o gás, causando uma explosão no prédio no qual mora, mas não morre. Na legislação brasileira, cometer suicídio não é crime, mas instigar, auxiliar ou induzir alguém a cometer suicídio é, se a pessoa de fato tentar se matar. É o caso das pessoas que fornecem a arma para que o suicida se mate ou das pessoas que gritam, incentivando para que o suicida se atire do alto do prédio. Instigar, auxiliar ou induzir alguém ao suicídio é um crime contra a vida, e é julgado pelo tribunal do júri (FOLHA DIREITO, 2013).
No contexto social, o suicida escolhe a forma de morte que vai ter e com isso faz um forte contraponto ao tabu da morte que impera em nossa sociedade – valorizamos a saúde, a estética, o corpo perfeito, a eterna juventude. Ariès (2012) publicou em 1975 o livro “História da Morte no Ocidente”, com ensaios que apresentavam a história das transformações sobre a percepção social da morte. O autor observa que na Idade Média, a morte era naturalizada, aceita e integrada na vida comum dos indivíduos – ela fazia parte do ciclo vital e era aceita como tal. Culturalmente, podemos considerar que a evolução das sociedades ocidentais modernas fez com que a morte deixasse de ser vista como uma etapa de um processo natural e passasse a ser cerceada e combatida por profissionais especializados, ocorrendo principalmente dentro de hospitais. A morte passou a ser compreendida como fracasso – dos recursos médicos, de uma vida que deveria estender-se em plenitude infinitamente.
A este respeito, Ariés (2012) observa:
Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade da felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento, mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estando no fundo da depressão. Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade, que é posta em questão, e a sociedade arrisca-se, então, a perder sua razão de ser (p. 89).
Se a morte natural passa a ter esse peso, que dizer então do suicídio, que parece questionar com ainda mais força essa felicidade idealizada que nossa cultura nos impele a buscar? Passa a ser visto como uma morte inaceitável:
Uma morte aceitável é uma morte que possa ser aceita ou tolerada pelos sobreviventes. Tem o seu contrário: a embarrassingly graceless dying, que deixa os sobreviventes embaraçados porque desencadeia uma emoção demasiado forte, e é a emoção o que é preciso evitar, tanto no hospital quanto na sociedade de um modo geral (Ariès, 2012, p. 87)."
- Trecho da dissertação "Cuidado, frágil: aproximações e distanciamentos de trabalhadores de um CAPS na atenção ao suicídio", de Luciana França Cescon (2015).
Referências:
ARIÈS, P. História da morte no Ocidente: da Idade
Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. [Ed. Especial].
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
CASSORLA, R. M. S. O que é suicídio. São Paulo: Brasiliense, 1986.
FOLHA DIREITO. Suicídio e crime. 12/06/2013.
Disponível em: http://direito.folha.uol.com.br/blog/suicdio-e-crimes.
Acesso em abril/2015.
NETTO, N. B. Suicídio: uma questão de saúde pública e um desafio para a Psicologia Clínica. In:CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). O Suicídio e os Desafios para a Psicologia. Brasília: CFP, 2013.
SILVA, J.W.F. O suicídio segundo a
igreja católica. 30/08/2011. Disponível em: http://coracaodejesusemaria.blogspot.com.br/2011/08/o-suicidio-segundo-igreja-catolica_31.html.
Acesso em abril/2015.
SILVA, N. e QUEIROS, N. O que
acontece com o suicida. 16/junho/2010. Disponível em: http://paradigmaespirita.blogspot.com.br/2010/06/o-que-acontece-com-o-suicida.html.
Acesso em abril/2015.