domingo, 25 de novembro de 2018

6 coisas que pessoas com depressão gostariam que você soubesse

Há dois anos, fui diagnosticada com depressão. No auge dos meus 25 anos, interpretei como um atestado de fracasso, pois enquanto meus amigos cresciam nas carreiras e na vida pessoal, eu precisei me afastar do trabalho e me sentia esquisita trocando a cerveja do bar por gotinhas de inibidores seletivos da recaptação da serotonina — os remédios mais comuns para o tratamento da depressão e transtornos de ansiedade.

Com o tempo, porém, entendi que não havia nada de esquisito no meu diagnóstico, pelo contrário, eu estava exatamente no grupo de maior prevalência: mulheres com entre 18 e 25 anos, segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIH), dos Estados Unidos.  
E percebi que falar sobre o assunto é importante não só para me ajudar a lidar com os sintomas do distúrbio, quanto para conscientizar outras pessoas sobre um transtorno que já é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a principal causa de problemas de saúde e incapacidade em todo o mundo.  Por isso, baseando-me em experiências próprias e conversas com outras pessoas que também têm ou tiveram depressão, reuni 6 coisas que gostaríamos que você soubesse:

1. Depressão não é sinônimo de tristeza
O sentimento de tristeza, que é muito mais uma sensação desesperança e falta de perspectiva em relação ao futuro do que vontade de ficar na cama chorando o dia inteiro, é só um dos sintomas do distúrbio. Muita gente, inclusive, reclama da inabilidade total de conseguir de fato derramar lágrimas.

2. Nem de preguiça
No auge de um episódio depressivo, até atividades de lazer, como assistir a um filme, podem se tornar difíceis. Isso porque a capacidade de concentração praticamente desaparece, e a única tarefa que não exige foco é ficar deitado — mas isso não necessariamente significa dormir. A insônia, aliás, é um dos sintomas mais comuns, ao contrário do que muita gente parece acreditar.

3. Nós somos os que mais duvidamos dos sintomas
Antes de sugerir que tudo possa ser “só uma fase” ou que “vá dar uma volta para melhorar o astral” a algum amigo que relata sintomas de depressão, saiba que tudo isso provavelmente já passou pela cabeça dele. Eu levei mais de seis meses de terapia, duas consultas em um clínico geral e uma em um psiquiatra para aceitar que o que eu tinha era real, e não um monte de frescuras e loucuras, e que eu devia tomar o remédio. Se você sente que precisa sugerir ou dar algum conselho, o melhor é oferecer ajuda para buscar recomendações de médicos ou mesmo acompanhar em alguma consulta.

4. E achamos que somos culpados por eles
Uma das maiores sacanagens da depressão é o sentimento de culpa não só pela situação, como por todos os problemas do mundo. O que não faz o menor sentido quando você vê de fora e está bem, mas menosprezar o sentimento, com frases do tipo “você está exagerando” ou “pare de frescura”, não ajudam em nada.

5. Não é só tomar um remedinho
Ao contrário de outras doenças, que têm um remédio feito sob medida para o tratamento, existem diferentes tipos de medicamentos para a depressão — e não estamos falando de genérico e não genérico, até porque a maioria deles é bem cara (alô, mundão, está na hora de deixar esse tratamento mais acessível, né?). Encontrar o ideal para cada pessoa pode levar tempo e mais tempo ainda pode levar até começarem a fazer efeitos: em média, três semanas. Tudo isso enquanto se aguenta no osso efeitos colaterais como náusea, boca seca, dor de cabeça. Como se estivesse com ressaca o tempo todo, não bastassem todos os outros sintomas.

6. Não se assustem
Depressão não é doença crônica, mas é quase como se fosse, por causa dos altos e baixos. Estou há alguns meses tentando parar de tomar o remédio, em vão. É claro que com o tempo a gente aprende a conviver e a identificar gatilhos que desestabilizam a química do cérebro, embora dificilmente haverá um momento de “cura”. Portanto, não se assustem se um dia estivermos bem e, no minuto seguinte, quisermos ir embora da festa. Acontece. É bom saber que você se importa e tem empatia, mas reações exageradas também incomodam — procure dar abertura para o deprimido conversar e só ouça o que ele tem a dizer.

MARILIA MARASCIULO

https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2018/09/6-coisas-pessoa-com-depressao-gostaria-que-voce-soubesse.html


domingo, 18 de novembro de 2018

No Outubro Rosa e no Novembro Azul também precisamos falar sobre suicídio


Quando falamos a respeito da prevenção do suicídio, sempre abordamos os fatores de risco e os fatores de proteção como aspectos fundamentais para a avaliação de risco. 

Como Kovács (1996, p. 17-18)  aponta:

"O diagnóstico de uma doença com prognóstico reservado traz à tona a fragilidade do ser humano e o contato com a sua finitude, lembrando a possibilidade da morte mais próxima. [...]
O medo do sofrimento, da dor e da degeneração podem fazer com que o indivíduo se sinta morto ou prefira morrer a viver uma quase vida".   

Existem estudos que relacionam as neoplasias a um risco mais significativo de suicídio, especialmente quando se trata de: pacientes do sexo masculino; período inicial do diagnóstico (os primeiros meses são apontados como momento de maior risco); diagnóstico de metástase e os desdobramentos da quimioterapia e de todo o tratamento; dor não controlada e impacto na qualidade de vida (OMS, 2000; ALBUQUERQUE E SAMPAIO, 2014).

Andrew Solomon, no livro "O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão" (2014, p. 256), relata o quanto o suicídio de sua mãe ("nos estágios finais do câncer terminal") quando ele tinha 27 anos, foi desestabilizador. "Embora eu admire minha mãe por ter feito o que fez e acredite em sua atitude, seu suicídio é o cataclismo de minha vida". 

Ele conta:
"O câncer de minha mãe foi diagnosticado em agosto de 1989. Em sua primeira semana no hospital, ela anunciou que ia se matar. Todos tentamos não levar a sério essa declaração, e ela não insistiu. Naquela época, ela não estava falando de um plano ponderado para terminar com seus sintomas - quase não tinha nenhum - , mas expressava uma sensação de ultraje ante a indignidade do que estava à sua frente e um profundo medo de perder o controle de sua vida. Na época, falava de suicídio como alguém que sofreu uma decepção no amor poderia falar dele, como uma alternativa rápida e fácil para o lento e doloroso processo de recuperação. Era como se quisesse vingança pela afronta que recebera da natureza; se sua vida não podia ser requintada como antes, ela não a queria mais" (SOLOMON, 2014, p. 259).    

Carvalho (1996, p. 94-95) comenta, a partir de sua experiência com pacientes da oncologia:
"[...] aprendi a reconhecer os que querem viver e os que querem morrer.. Não chego a dizer que o câncer já tenha sido provocado, inconscientemente, com essa intenção. Mas, uma vez instalado o processo canceroso, aqueles que realmente querem viver muitas vezes conseguem reverter o processo. Outros vão se entregando aos braços de uma dama atraente, às vezes libertadora, às vezes consoladora, chamada Morte. Já ouvi a frase - o câncer é um suicídio socialmente aceito".  

O diagnóstico do câncer pode mobilizar medo, angústia e potencializar o surgimento de quadros de sofrimento mental - principalmente a depressão e a ansiedade. Determinados transtornos mentais, associados a fatores psicossociais,  podem potencializar as tendências autodestrutivas, incluindo a morte autoprovocada.  
“O suicídio pode ser um meio de manter o senso de controle e uma alternativa reconfortante para pacientes que se sentem oprimidos pela incerteza, sentimentos de impotência e temor de experimentar um sofrimento insuportável” (SANTOS, 2017).

De acordo com uma pesquisa de Teng, Humes e Demetrio (2005), “pacientes oncológicos deprimidos aderem menos aos tratamentos propostos, piorando seu prognóstico. A qualidade de vida fica comprometida, acelerando um ciclo vicioso de desesperança que pode culminar em suicídio”.

Segundo Albuquerque e Cabral (2014):

"Ideias de suicídio podem surgir como uma alternativa, que alguns consideram racional, a uma morte dolorosa e incontrolável, especialmente em fases avançadas da doença 'se as coisas piorarem muito, terei sempre uma saída' " (p. 349).  

Considerando estas questões, é fundamental oferecer um cuidado integral para pessoas que se encontram em tratamento de câncer e fortalecer ainda mais os fatores de proteção. 

Para Albuquerque e Cabral, o primeiro cuidado deve ser a disponibilidade para discutir abertamente sobre a doença, suas angústias e o medo da morte. As autoras destacam ainda a importância do controle dos sintomas físicos, para promover o bem-estar e permitir que a pessoa tenha o menor sofrimento possível.

Redes de apoio, grupos terapêuticos e acompanhamento psicológico são recursos importantes para que a valorização da vida se intensifique cada vez mais.  

Como diz Rubem Alves: “Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo  que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo) [...] Ela nos convida a contemplar a nossa própria verdade. E o que ela nos diz é simplesmente isto:  'Veja a vida. Não há tempo a perder.
É preciso viver agora!  Não se pode deixar o amor para depois...'". 

Sempre é possível ressignificar nossas experiências, como Sophie Sabbage afirma no livro "O que o câncer me ensinou":

 "A partir do momento em que soube que minha doença era incurável, minha vida foi transformada radicalmente. Morrer é agora uma parte íntima e integral do meu viver. É minha companhia de todos os dias. Eu precisava aceitar essa presença e reconhecer que a morte não precisava me roubar do meu propósito, que eu ainda podia ser motivada e transformada pela maneira como me dedico a esta experiência. Mesmo as grandes feridas da minha vida podiam ser curadas antes de eu morrer.
[...] Eu poderia perdoar o que não havia sido perdoado; refazer relacionamentos que tinham sido negligenciados; publicar a poesia que  escondera em arquivos secretos no meu computador [...] e substituir os arrependimentos da minha vida por gratidão pelo que realizei ao longo do caminho. Eu poderia morrer curada, viver curada e sair transformada ou sobreviver transformada. O resultado final está nas mãos de Deus, mas isso é de minha total responsabilidade"Sophie Sabbage em "O que o câncer me ensinou" (2017, p. 93).

- Psicóloga Luciana França Cescon 

Referências

ALBUQUERQUE, Emília e CABRAL, Ana Sofia. Doença oncológica e suicídio. In: SARAIVA, Carlos Braz; PEIXOTO, Bessa e SAMPAIO, Daniel (coord.). Suicídio e comportamentos autolesivos: Dos conceitos à prática clínica. Lisboa: Lidel, 2014 (pp.349-356).  

CARVALHO, Margarida M. J. de. Suicídio: a morte de si próprio. In: BROMBERG, Maria Helena Pereira Franco; KOVÁCS, Maria Julia et al. Vida e morte: laços da existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.

KOVÁCS, Maria Julia. A morte em vida. In: BROMBERG, Maria Helena Pereira Franco; KOVÁCS, Maria Julia et al. Vida e morte: laços da existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da saúde em Atenção Primária. Genebra, 2000.  

SABBAGE, Sophie. O que o câncer me ensinou. São Paulo: Sextante, 2017. 

SANTOS, Manoel Antônio dos. Câncer e suicídio em idosos: determinantes psicossociais do risco, psicopatologia e oportunidades para prevenção. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 22, n. 9, p. 3061-3075,  Setembro  2017.

SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. 2a. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.  

TENG, Chei Tung; HUMES, Eduardo de Castro; DEMETRIO, Frederico Navas. Depressão e comorbidades clínicas. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 32, n. 3, p. 149-159,  Junho  2005 .


domingo, 11 de novembro de 2018

Livro: A tristeza transforma, a depressão paralisa_______Neury Botega

Mais um trabalho incrível do Dr. Neury Botega, que aborda a depressão sob três aspectos: 1) para pessoas com depressão; 2)para familiares e amigos de alguém que esteja enfrentando a depressão e 3) com informações aprofundadas sobre o tema.

Em uma linguagem superacessível, com exemplos de relatos e casos que traz da sua vasta bagagem na área da saúde mental, é uma leitura mais do que indicada.

"Se a tristeza brota em meio a uma crise existencial nutrida por conflitos que se arrastam, é imprescindível examinar atentamente o que se passa dentro da gente e não fugir [...] A tristeza pode ser transformadora" (p. 19-20).

"A depressão altera radicalmente o modo de pensar, de se ver e de viver. Afeta o passado, o presente e o futuro. A lente da depressão aumenta o tamanho dos problemas e faz com que só enxerguemos defeitos e dificuldades, nenhuma luz. Por causa da depressão, deixamos de valorizar nossas qualidades e conquistas" (p. 26).

"Se você tivesse sido atropelado por um caminhão e sobrevivesse, já imaginou como seria sua recuperação, como levaria algum tempo? [...] Então, se você está sofrendo de depressão, de alguma forma você foi atropelado pelo destino!
Se a depressão estiver relacionada a uma perda ou uma adversidade, o sentido da vida terá de ser ressignificado" (p. 79).

"Algumas pessoas pensam que não há doença mental que resista ao esforço pessoal de superação. Pois não é assim. Força de vontade não cura depressão. [...] É preciso tratamento para recobrar forças!" (p. 115).

"Quem nunca teve depressão geralmente a imagina como uma tristeza, uma onda de baixo-astral que pode melhorar a partir do esforço pessoal. 'Você tem que reagir, tem que se esforçar pra melhorar!' Comentários como esse são comuns e têm o intuito de animar o paciente deprimido. O problema é que eles põem a culpa na vítima. A pessoa deprimida sabe o que deveria fazer, mas simplesmente não consegue iniciar uma ação. Sente desânimo e impotência paralisantes" (p. 117).


domingo, 4 de novembro de 2018

O suicida não é covarde nem herói

Em uma conversa franca e corajosa sobre o suicídio do marido, a psicóloga mineira Luciana Rocha, hoje especialista no tema, nos ajuda a entender, sem culpa ou condenação, o gesto extremo de quem tira a própria vida.

Por Cynthia de Almeida 01/11/2018

Era pouco mais de meia-noite e, enquanto se preparavam para dormir, Luciana e Marden tiveram uma conversa corriqueira sobre os planos para o dia seguinte: a agenda de trabalho dos dois, uma festinha escolar dos filhos. Deram-se um beijo de boa noite. Luciana e as crianças dormiam quando Marden abriu a janela da sala e se jogou do 15º andar.

O salto para a morte aos 47 anos, depois de 15 de um casamento amoroso e harmônico, com dois filhos de 10 e 5 anos, lançou a família no absurdo vazio da dor e na vertigem da ausência auto-imposta e aparentemente inexplicável. Luciana tinha 41 anos, era psicóloga há 20 e decidiu então estudar o tema e se especializar em suicídio. Hoje, passados três anos daquela noite, é capaz de entender à luz da ciência o que aconteceu com Marden e com tantas pessoas que, como ele, tiram a própria vida, vítimas de um ou mais transtornos mentais subestimados por eles mesmos e invisíveis aos olhos de quem os cercam. Nesta conversa, a psicóloga mineira fala com enorme carinho do marido e nos explica por que o suicida não é nem covarde nem herói.

O que você se lembra do dia da morte do seu marido?
Eu e o Marden tínhamos conversado sobre os planos do dia seguinte: haveria uma festa na escola das crianças e eu não poderia comparecer mas ele falou que iria. Me deu um beijo e disse que ia dormir no quarto do nosso filho mais novo. Fui acordada pela minha irmã, que mora no mesmo prédio. Quando cheguei na sala a encontrei chorando e me dizendo que alguma coisa horrível tinha acontecido com o Marden. Na hora eu não entendi nada e disse que ele estava em casa, no quarto do nosso filho. Abri a porta do quarto e ele não estava. Na sala, a janela estava aberta e a rede de proteção havia sido cortada. Ele deixou a tesoura bem à mostra no batente e se jogou do 15º andar. Os pedaços cortados da rede ficaram no bolso dele. Acredito que tenha feito isso para não haver dúvidas de que ele próprio a cortara antes de se jogar. Deixou também uma longa carta, páginas e páginas com instruções minuciosas sobre questões práticas e sobre o que devíamos fazer depois da sua partida.

A última conversa deu alguma pista do que ele estava prestes a fazer?
Nenhuma. Eu sabia que estava passando por dificuldades na empresa (ele trabalhava no ramo de entretenimento) mas, nada que não pudéssemos superar. O Marden sempre foi uma pessoa muito alegre, animada, divertida. Nós sabíamos que havia algo de bipolar no seu comportamento, uma doença que ele subestimou e descuidou. Não se tratou como devia. Chegou a se medicar, mas sem a devida constância. Parecia sempre muito bem disposto, otimista. Hoje, depois de estudar o assunto, identifico nele características que o classificariam como um suicida potencial. Ele tinha o que chamamos de “depressão sorridente”. Sabe-se que 100% das pessoas que se suicidam tem um ou mais transtornos psicológicos. E meu marido tinha esses fatores de risco. Um deles é não enxergar uma solução para um problema. Há uma rigidez que os impede de pedir ajuda. Eles acham que tem que resolver sozinhos um obstáculo que acreditam intransponível.

Você se lembra dos seus primeiros pensamentos após o ocorrido?
O que lembro, dentro do choque, foi de pensar em como eu poderia contar para as crianças. O pai era muito amoroso, presente e carinhoso com eles. Assim como comigo. Ele os colocou na cama para dormir e simplesmente não estava mais lá no dia seguinte…
Eu não os acordei no meio da noite. Deixei que acordassem de manhã e então me sentei com eles no sofá e contei que o pai havia sofrido um acidente. Na mesma hora o meu filho mais novo perguntou: “O papai morreu?”. Eu respondi que sim, o papai morreu. Disse que ele fora consertar a rede da janela e se desequilibrou e caiu. Foi horrível: os dois choraram, saíram correndo. Me disseram que era minha culpa, que eu não tinha segurado o pai. Eu contei que não pude ajudá-lo porque também estava dormindo. Um ano depois, minha filha mais velha me questionou sobre a veracidade do acidente e eu contei a verdade: o pai se suicidara. Foi muito triste e naquele momento ela disse que a culpa era dela, porque às vezes ela não aceitava os convites do pai para jantar. Eu disse, imagine, vocês foram muito amigos, sempre juntos. Disse a ela que o pai morreu porque estava doente mas nós não sabíamos, ele não sabia. Ele estava muito doente e foi a sua doença que o matou.

Como foi para você enfrentar a culpa que por perder alguém amado por suicídio?
Não me senti culpada em nenhum momento. Hoje, com o conhecimento que tenho acho que poderia ter ajudado, mas naquele momento não tinha.
Eu sigo a filosofia budista há 20 anos e graças a ela, tenho uma aceitação maior dos fatos. Entendi, desde o início, que não adiantava me revoltar. Tratei de focar nas qualidades do Marden e nas coisas boas que vivemos, nós e nossos filhos. Tenho a convicção de que as coisas boas foram muito maiores do que o fim trágico.

Você concorda com a teoria que diz que, no caso do suicídio, assassino e vítima são a mesma pessoa e os sobreviventes tem que lidar com esse sentimento ambíguo em relação a quem partiu?
Não concordo. O suicídio é multifatorial. Quando a pessoa decide se matar, ela simplesmente não vê outra solução. Mesmo quem, como o meu marido, poderia ter tratado seus transtornos e não o fez não pode ser culpado: nossa sociedade sofre de psicofobia, que é o preconceito contra a doença mental. A gente tem que entender que é difícil para a pessoa aceitar o transtorno. O que podemos fazer como sociedade é combater o tabu e o preconceito. A primeira coisa seria mostrar que é comum, até banal, ter um transtorno. Não tem que ter vergonha. O suicida se sente envergonhado do que passa. Acha que tem que ser feliz e tem vergonha de procurar ajuda.

Você já o perdoou?
Não tive que perdoá-lo porque nunca o condenei. Entendo que fez o que fez porque estava em um estado desesperador. E que na cabeça dele, a morte era a única saída. Nunca tive raiva. Minha escolha foi a de continuar vivendo e buscando a felicidade. Uma semana depois da sua morte eu estava no meu grupo de meditação. Aos prantos, mas presente.

O suicídio é previsível?
Uma das coisas terríveis que a gente ouve é: “mas você não viu o que estava acontecendo?”. Quem diz isso a alguém no momento do luto não tem noção da gravidade das suas palavras. O suicídio pode ser prevenido, mas não pode ser previsto. O suicídio é uma ideia planejada. A pessoa pensou nisso mais de uma vez e não apenas no momento daquele ato. Quem tenta uma vez, tem 50% de chance de tentar de novo. E ser bem-sucedido.

Como os familiares devem agir nesse caso?
É muito difícil. Essas famílias que tentam proteger um potencial suicida de si mesmo ficam esgotadas. A maior parte delas, sem assistência, tem que se organizar em rodízios. É muito sacrificado. Para essas famílias eu diria que há um limite para nos sentirmos responsáveis pela vida do outro.

Qual é o peso do estigma para a família?
Se falar sobre o luto é tabu, o luto por suicídio de alguém próximo é maior ainda. Por muito tempo eu imaginava que, onde quer que eu fosse as pessoas estariam me olhando e pensando: “ela é aquela que o marido se matou…” O que se pensa, geralmente, é que uma família em que acontece um suicídio não pode ser normal. É compreensível que se pense assim. Para nós que temos uma pulsão de vida, é difícil entender a pulsão de morte. Por outro lado, o drama acentua a compaixão. Recebi muito carinho e conforto por parte da minha família e dos amigos mais queridos. Alguns não conseguem lidar com isso e se afastam. É compreensível.
No exato dia da morte, como havia aquela festa na escola sobre a qual falamos na nossa última conversa, vi, de repente minha casa cheia de pais de colegas das crianças, as pessoas me cercando de cuidado, trazendo comida, oferecendo-se para levá-los para passear. Tive uma rede de grande proteção e solidariedade.

Como foi retomar a vida?
Minha família foi fundamental. Meus pais, maravilhosos. Minha mãe me estimulava muito a voltar a sair, a reencontrar os amigos e me divertir. Confesso que nas primeiras vezes em que saí, quase um ano depois, achava que tinha sempre alguém me olhando e me julgando: ‘Olha aí a viúva alegre”. Mesmo assim, eu me esforcei para seguir em frente. As pessoas me ligavam queriam saber como eu estava mas nunca que convidavam pra nada, constrangidas. Eu tive que pedir que me chamassem. Mesmo que eu não quisesse e não fosse, eu queria ser chamada. Lembro do meu constrangimento de pegar o elevador à noite, arrumada e com um vinho na mão… Mas concluí que não podia me guiar pelo que eu achava que os outros iriam pensar, mas pelo que eu mesma pensava.

Você gosta de falar do seu marido?
Eu adoro falar sobre o Marden. No primeiro ano eu falava dele e também com ele o tempo todo. Olhava para nossa foto ao lado da cama e dizia: “Ei Salabim (eu o chamava assim e ele a mim), veja a situação em que você me deixou”. Falava e chorava tanto que dormia e acordava chorando. Meus filhos me diziam de manhã: “mãe, você ainda está chorando?”. E eu respondia: ‘Não filhos, eu dormi e voltei a chorar agora” (risos).

Como você, enlutada, ajuda as crianças com o luto pelo pai?
O budismo me ajuda. Vivemos o presente e eu os ensino a não pensar em como poderia ter sido diferente. Aqui em casa não tem “e se?”. As coisas são o que são e temos que lidar com o que estamos vivendo

Como você decidiu estudar o tema do suicídio?
Quando meu marido morreu, eu ainda trabalhava na empresa da minha família, apesar de ser psicóloga há 20 anos e nunca ter deixado de atender no consultório. Mas naquele momento eu senti que era importante me desligar do trabalho na empresa e fui estudar tanatologia e suicídio. Depois segui com os estudos e me especializei em cuidados paliativos. Desde então venho tratando do tema e participando de congressos, cursos e dado palestras. Atendo muitos enlutados e tem sido muito bom, para mim e meus pacientes, eu estar nesse lugar com o meu próprio luto. O luto é individual e único, mas posso oferecer a escuta e mostrar que é possível seguir a vida.

O que você gostaria de dizer para um enlutado que perdeu alguém por suicídio?
Primeiro, duas coisas tem que ficar claras: o suicídio é conseqüência de uma ou mais doenças mentais. O suicida não é um covarde e se matar não é um ato de heroísmo. É muito importante entender que a pessoa não se matou. A doença o matou. Em segundo lugar, não devemos culpar o suicida por sua decisão. Ele agiu com as informações de que dispunha naquele momento. Ele não pede ajuda e disfarça muito bem sua condição. Fez o que podia.

É possível encontrar uma razão?
A família não deve procurar o por quê. Não existe essa resposta.