Em uma conversa franca e corajosa sobre o suicídio do marido, a psicóloga mineira Luciana Rocha, hoje especialista no tema, nos ajuda a entender, sem culpa ou condenação, o gesto extremo de quem tira a própria vida.
Por Cynthia de Almeida 01/11/2018
Era pouco mais de meia-noite e, enquanto se preparavam para dormir, Luciana e Marden tiveram uma conversa corriqueira sobre os planos para o dia seguinte: a agenda de trabalho dos dois, uma festinha escolar dos filhos. Deram-se um beijo de boa noite. Luciana e as crianças dormiam quando Marden abriu a janela da sala e se jogou do 15º andar.
O salto para a morte aos 47 anos, depois de 15 de um casamento amoroso e harmônico, com dois filhos de 10 e 5 anos, lançou a família no absurdo vazio da dor e na vertigem da ausência auto-imposta e aparentemente inexplicável. Luciana tinha 41 anos, era psicóloga há 20 e decidiu então estudar o tema e se especializar em suicídio. Hoje, passados três anos daquela noite, é capaz de entender à luz da ciência o que aconteceu com Marden e com tantas pessoas que, como ele, tiram a própria vida, vítimas de um ou mais transtornos mentais subestimados por eles mesmos e invisíveis aos olhos de quem os cercam. Nesta conversa, a psicóloga mineira fala com enorme carinho do marido e nos explica por que o suicida não é nem covarde nem herói.
O que você se lembra do dia da morte do seu marido?
Eu e o Marden tínhamos conversado sobre os planos do dia seguinte: haveria uma festa na escola das crianças e eu não poderia comparecer mas ele falou que iria. Me deu um beijo e disse que ia dormir no quarto do nosso filho mais novo. Fui acordada pela minha irmã, que mora no mesmo prédio. Quando cheguei na sala a encontrei chorando e me dizendo que alguma coisa horrível tinha acontecido com o Marden. Na hora eu não entendi nada e disse que ele estava em casa, no quarto do nosso filho. Abri a porta do quarto e ele não estava. Na sala, a janela estava aberta e a rede de proteção havia sido cortada. Ele deixou a tesoura bem à mostra no batente e se jogou do 15º andar. Os pedaços cortados da rede ficaram no bolso dele. Acredito que tenha feito isso para não haver dúvidas de que ele próprio a cortara antes de se jogar. Deixou também uma longa carta, páginas e páginas com instruções minuciosas sobre questões práticas e sobre o que devíamos fazer depois da sua partida.
A última conversa deu alguma pista do que ele estava prestes a fazer?
Nenhuma. Eu sabia que estava passando por dificuldades na empresa (ele trabalhava no ramo de entretenimento) mas, nada que não pudéssemos superar. O Marden sempre foi uma pessoa muito alegre, animada, divertida. Nós sabíamos que havia algo de bipolar no seu comportamento, uma doença que ele subestimou e descuidou. Não se tratou como devia. Chegou a se medicar, mas sem a devida constância. Parecia sempre muito bem disposto, otimista. Hoje, depois de estudar o assunto, identifico nele características que o classificariam como um suicida potencial. Ele tinha o que chamamos de “depressão sorridente”. Sabe-se que 100% das pessoas que se suicidam tem um ou mais transtornos psicológicos. E meu marido tinha esses fatores de risco. Um deles é não enxergar uma solução para um problema. Há uma rigidez que os impede de pedir ajuda. Eles acham que tem que resolver sozinhos um obstáculo que acreditam intransponível.
Você se lembra dos seus primeiros pensamentos após o ocorrido?
O que lembro, dentro do choque, foi de pensar em como eu poderia contar para as crianças. O pai era muito amoroso, presente e carinhoso com eles. Assim como comigo. Ele os colocou na cama para dormir e simplesmente não estava mais lá no dia seguinte…
Eu não os acordei no meio da noite. Deixei que acordassem de manhã e então me sentei com eles no sofá e contei que o pai havia sofrido um acidente. Na mesma hora o meu filho mais novo perguntou: “O papai morreu?”. Eu respondi que sim, o papai morreu. Disse que ele fora consertar a rede da janela e se desequilibrou e caiu. Foi horrível: os dois choraram, saíram correndo. Me disseram que era minha culpa, que eu não tinha segurado o pai. Eu contei que não pude ajudá-lo porque também estava dormindo. Um ano depois, minha filha mais velha me questionou sobre a veracidade do acidente e eu contei a verdade: o pai se suicidara. Foi muito triste e naquele momento ela disse que a culpa era dela, porque às vezes ela não aceitava os convites do pai para jantar. Eu disse, imagine, vocês foram muito amigos, sempre juntos. Disse a ela que o pai morreu porque estava doente mas nós não sabíamos, ele não sabia. Ele estava muito doente e foi a sua doença que o matou.
Como foi para você enfrentar a culpa que por perder alguém amado por suicídio?
Não me senti culpada em nenhum momento. Hoje, com o conhecimento que tenho acho que poderia ter ajudado, mas naquele momento não tinha.
Eu sigo a filosofia budista há 20 anos e graças a ela, tenho uma aceitação maior dos fatos. Entendi, desde o início, que não adiantava me revoltar. Tratei de focar nas qualidades do Marden e nas coisas boas que vivemos, nós e nossos filhos. Tenho a convicção de que as coisas boas foram muito maiores do que o fim trágico.
Você concorda com a teoria que diz que, no caso do suicídio, assassino e vítima são a mesma pessoa e os sobreviventes tem que lidar com esse sentimento ambíguo em relação a quem partiu?
Não concordo. O suicídio é multifatorial. Quando a pessoa decide se matar, ela simplesmente não vê outra solução. Mesmo quem, como o meu marido, poderia ter tratado seus transtornos e não o fez não pode ser culpado: nossa sociedade sofre de psicofobia, que é o preconceito contra a doença mental. A gente tem que entender que é difícil para a pessoa aceitar o transtorno. O que podemos fazer como sociedade é combater o tabu e o preconceito. A primeira coisa seria mostrar que é comum, até banal, ter um transtorno. Não tem que ter vergonha. O suicida se sente envergonhado do que passa. Acha que tem que ser feliz e tem vergonha de procurar ajuda.
Você já o perdoou?
Não tive que perdoá-lo porque nunca o condenei. Entendo que fez o que fez porque estava em um estado desesperador. E que na cabeça dele, a morte era a única saída. Nunca tive raiva. Minha escolha foi a de continuar vivendo e buscando a felicidade. Uma semana depois da sua morte eu estava no meu grupo de meditação. Aos prantos, mas presente.
O suicídio é previsível?
Uma das coisas terríveis que a gente ouve é: “mas você não viu o que estava acontecendo?”. Quem diz isso a alguém no momento do luto não tem noção da gravidade das suas palavras. O suicídio pode ser prevenido, mas não pode ser previsto. O suicídio é uma ideia planejada. A pessoa pensou nisso mais de uma vez e não apenas no momento daquele ato. Quem tenta uma vez, tem 50% de chance de tentar de novo. E ser bem-sucedido.
Como os familiares devem agir nesse caso?
É muito difícil. Essas famílias que tentam proteger um potencial suicida de si mesmo ficam esgotadas. A maior parte delas, sem assistência, tem que se organizar em rodízios. É muito sacrificado. Para essas famílias eu diria que há um limite para nos sentirmos responsáveis pela vida do outro.
Qual é o peso do estigma para a família?
Se falar sobre o luto é tabu, o luto por suicídio de alguém próximo é maior ainda. Por muito tempo eu imaginava que, onde quer que eu fosse as pessoas estariam me olhando e pensando: “ela é aquela que o marido se matou…” O que se pensa, geralmente, é que uma família em que acontece um suicídio não pode ser normal. É compreensível que se pense assim. Para nós que temos uma pulsão de vida, é difícil entender a pulsão de morte. Por outro lado, o drama acentua a compaixão. Recebi muito carinho e conforto por parte da minha família e dos amigos mais queridos. Alguns não conseguem lidar com isso e se afastam. É compreensível.
No exato dia da morte, como havia aquela festa na escola sobre a qual falamos na nossa última conversa, vi, de repente minha casa cheia de pais de colegas das crianças, as pessoas me cercando de cuidado, trazendo comida, oferecendo-se para levá-los para passear. Tive uma rede de grande proteção e solidariedade.
Como foi retomar a vida?
Minha família foi fundamental. Meus pais, maravilhosos. Minha mãe me estimulava muito a voltar a sair, a reencontrar os amigos e me divertir. Confesso que nas primeiras vezes em que saí, quase um ano depois, achava que tinha sempre alguém me olhando e me julgando: ‘Olha aí a viúva alegre”. Mesmo assim, eu me esforcei para seguir em frente. As pessoas me ligavam queriam saber como eu estava mas nunca que convidavam pra nada, constrangidas. Eu tive que pedir que me chamassem. Mesmo que eu não quisesse e não fosse, eu queria ser chamada. Lembro do meu constrangimento de pegar o elevador à noite, arrumada e com um vinho na mão… Mas concluí que não podia me guiar pelo que eu achava que os outros iriam pensar, mas pelo que eu mesma pensava.
Você gosta de falar do seu marido?
Eu adoro falar sobre o Marden. No primeiro ano eu falava dele e também com ele o tempo todo. Olhava para nossa foto ao lado da cama e dizia: “Ei Salabim (eu o chamava assim e ele a mim), veja a situação em que você me deixou”. Falava e chorava tanto que dormia e acordava chorando. Meus filhos me diziam de manhã: “mãe, você ainda está chorando?”. E eu respondia: ‘Não filhos, eu dormi e voltei a chorar agora” (risos).
Como você, enlutada, ajuda as crianças com o luto pelo pai?
O budismo me ajuda. Vivemos o presente e eu os ensino a não pensar em como poderia ter sido diferente. Aqui em casa não tem “e se?”. As coisas são o que são e temos que lidar com o que estamos vivendo
Como você decidiu estudar o tema do suicídio?
Quando meu marido morreu, eu ainda trabalhava na empresa da minha família, apesar de ser psicóloga há 20 anos e nunca ter deixado de atender no consultório. Mas naquele momento eu senti que era importante me desligar do trabalho na empresa e fui estudar tanatologia e suicídio. Depois segui com os estudos e me especializei em cuidados paliativos. Desde então venho tratando do tema e participando de congressos, cursos e dado palestras. Atendo muitos enlutados e tem sido muito bom, para mim e meus pacientes, eu estar nesse lugar com o meu próprio luto. O luto é individual e único, mas posso oferecer a escuta e mostrar que é possível seguir a vida.
O que você gostaria de dizer para um enlutado que perdeu alguém por suicídio?
Primeiro, duas coisas tem que ficar claras: o suicídio é conseqüência de uma ou mais doenças mentais. O suicida não é um covarde e se matar não é um ato de heroísmo. É muito importante entender que a pessoa não se matou. A doença o matou. Em segundo lugar, não devemos culpar o suicida por sua decisão. Ele agiu com as informações de que dispunha naquele momento. Ele não pede ajuda e disfarça muito bem sua condição. Fez o que podia.
É possível encontrar uma razão?
A família não deve procurar o por quê. Não existe essa resposta.