domingo, 29 de janeiro de 2017

A editora-executiva do Huffington Post UK, Poorna Bell, faz um desabafo e uma reflexão sobre o suicídio do marido. Ao mesmo tempo em que busca entender a decisão do esposo, ela defende que precisamos conversar sobre saúde mental a fim de lidarmos com nossos transtornos interiores.



Meu querido marido,

Faz quase 30 dias que você espremeu o brilho da vida entre suas mãos.
Desde então, venho tentando entender o mundo.
No hinduísmo - uma religião que você se dispôs de coração a conhecer, apesar de eu ter perdido minha fé muito tempo atrás - temos uma cerimônia de 11 dias e uma de 30 dias.
Nunca entendi para que elas serviam. Mas talvez elas marquem algumas compreensões.
Em 11 dias, tive consciência de que sua morte tinha me transformado numa pessoa diferente.
Tudo parecia, cheirava, tinha sabor diferente. Pessoas que conheço há anos pareciam estranhos em meio ao que eu sentia. Achava que elas não poderiam imaginar o que eu passava.

Vi você em tudo. No mar, te imaginando entre as ondas. Em seu túmulo, entre as frésias que você tanto amava. Te vi nos pássaros, que você conhecia como ninguém, e no arco-íris duplo que iluminou o céu no dia em que nos despedimos de você.
Você era um Kiwi, um neozelandês de verdade, e ainda assim eu te vi nas coisas mais delicadas.
Me perguntei se deveria te escrever em público. Mas, considerando tudo o que conversamos no último ano sobre doenças mentais e como tínhamos certeza de que evitar o assunto só contribuía para a vergonha e o estigma que as cercam, sei que você gostaria que eu escrevesse. (Me pego fazendo isso o tempo todo: 'Com certeza Rob ia querer que eu comesse aquele outro chocolate, entre outras decisões de vida importantes'.)

Sei que você gostaria que eu falasse, para que ajudar alguém que estivesse passando pelo mesmo que você passou. Em público ou não.
Sei que nós dois sempre acreditamos que o silêncio sobre as doenças mentais cria um ambiente tóxico para os homens, de quem se espera - em suas próprias palavras - 'ser homem, sofrer em silêncio e seguir em frente.

Descobri muitas coisas desde que você tirou sua própria vida.
Primeiro, embora não haja hierarquia na morte, uma forma não é melhor que a outra, tenho certeza de que viver uma vida longa está no alto da lista, e viver uma vida curta, no pé. Não sei onde entra o suicídio, mas acho que dá para dizer que ele deixa as outras pessoas MUITO pouco à vontade.

Me aconselharam a não contar como você morreu. E, na bizarrice inicial de escolher um jazigo e um caixão (e ter de responder se você era uma pessoa preocupada com o ambiente), preferi ser cautelosa.
Mas, neste 30º dia, percebi que quando acontece a pior, a mais terrível das coisas, você não tem mais energia para manter qualquer artifício.

Também há uma indignação se levantando em mim. Se você tivesse morrido de câncer, eu teria mantido em segredo as circunstâncias da sua morte? Claro que não. Faríamos uma corrida beneficente para dar uma porrada no câncer.
É como se o método da sua morte implicasse fraqueza, quando sei o quanto você lutou para ficar neste mundo.

Apesar das cartas que você recebeu, você conquistou tanto, amou tão profundamente, foi gentil e bondoso e ajudou todas as pessoas em dificuldades (até mesmo o sem-teto do nosso ponto de ônibus, que você queria deixar dormir no nosso sofá). Você era a pessoa mais inteligente que conheci - por que não te homenagearia?

E talvez isso diga muito a respeito da montanha que temos de escalar para que as pessoas entendam que doença mental é exatamente como o câncer. É exatamente como uma parada cardíaca. Não há amor, medicina ou dinheiro capaz de curá-la, se ela for terminal.

Quando alguém se suicida, existe um ódio para com a pessoa que não existe quando a doença é física. Ninguém diz: 'Ah, não ACREDITO que Larry morreu de câncer? Como ele pode fazer isso?'
Depois, muita gente me disse: 'Estou com raiva dele'. Havia muito disso por aí: como você foi capaz de fazer essa escolha e nos deixar atolados nesse luto profundo. Raiva por você ter abandonado sua vida e as pessoas que faziam parte dela.

E talvez isso seja uma reação completamente natural - eu certamente pensei 'Como você pode fazer isso comigo' nos primeiros dias depois da sua morte -, mas, depois de um tempo, temos de nos lembrar do que você tinha de melhor.
Não estou dizendo que estou resolvida. Não sei se um dia vou entender plenamente sua decisão de acabar com sua própria vida.

Quando finalmente reuni a coragem de colocar minha mão no seu peito pela última vez e senti como você estava frio, sua alma evaporada, seus olhos fechados para sempre, entendi que era definitivo. Entendi que qualquer idiota pode criar uma vida - como prova qualquer episódio de 16 and Pregnant (16 anos e grávida) -, mas, uma vez concebida, ela é um dom muito precioso.

Acho que a raiva vem do fato de não saber que estávamos perto do fim. Ela é ampliada pela culpa que todos sentimos.
Devíamos ter te abraçado mais, passado mais tempo com você, memorizado cada pedaço seu, dito que te amamos - devíamos ter passado só mais um dia com você -, porque, no fundo, achamos que talvez assim você não tivesse se matado.

O que quero dizer é que entendo. Quando se trata de suicídio, o que parece uma escolha para os outros não era uma escolha para você. Nosso amor - e você tinha um oceano de pessoas que te amavam - não iria te ancorar neste mundo quando você não enxergava uma possibilidade, uma esperança.

Enquanto escrevo essa mensagem, há muita gente que pensa da mesma maneira. Algumas delas não vão fazer essa escolha terrível e final. Outras vão. E, apesar de ainda não ter as respostas (talvez daqui 30 dias mais), sei que precisamos falar do assunto.

Elas precisam saber que podem pedir ajuda quando a escuridão ameaçar engoli-las. Precisamos dar espaço, voz e compreensão para que os homens sintam medo e vulnerabilidade, sem achar que isso é fraqueza. Precisamos dizer que a doença mental precisa de recursos financeiros. Ela deveria ser uma prioridade tanto quanto o câncer ou a obesidade.

Não estou dizendo que isso te salvaria. Mas estou dizendo que me recuso a me lembrar de você com raiva e vergonha, pois o que tínhamos era um amor imenso.


Para Robert Owen Bell, 23 de dezembro de 1975 - 28 de maio de 2015

Este artigo foi originalmente publicado pelo HuffPost UK e traduzido do inglês.


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