Prática assusta pais e educadores e aponta para um sofrimento não veiculado pela palavra. Especialistas falam da importância de se ensinar a lidar com frustrações.
By Amanda Mont'Alvão Veloso
“Por fora eu estou em chamas e por dentro sou apenas um vazio. Não posso me cortar, mas preciso que alguma coisa seja tirada de mim, preciso de alívio.”
As palavras são de Charlotte Davis, 17 anos, protagonista do livro Garota em Pedaços(Editora Planeta, 2017), escrito pela norte-americana Kathleen Glasgow. Mas bem poderiam pertencer aos muitos jovens que se cortam, se queimam e se furam para dar vazão a uma dor sem nome e sem endereço. Ficam as cicatrizes onde antes transbordava a angústia.
A prática da automutilação, também conhecida como cutting, preocupa pais, familiares, amigos e educadores. A maior prevalência ocorre entre a pré-adolescência e a idade do adulto jovem, ou seja, dos 12 aos 30 anos, informa o psicólogo e especialista em tanatologia Carlos Henrique de Aragão Neto ao CVV (Centro de Valorização da Vida). Nos EUA, estima-se que uma a cada 200 garotas entre 13 e 19 anos se automutile, conforme dados trazidos pela autora Kathleen Glasgow. Ainda assim, o mapeamento do cutting não inclui os casos que não são notificados aos sistemas de saúde, o que pode indicar uma incidência ainda maior. É um assunto tão marginal nos relatórios e nas informações disponíveis quanto nas conversas.
De fato o tema é árido e a palavra, automutilação, carregada de peso. Sua existência evidencia o esgotamento das explicações racionais - afinal, por que alguém iria provocar dor física em si mesmo como maneira de lidar com outra dor? - e aponta para uma série de complexidades e ambivalências, tipicamente encontradas no período de transição do mundo infantil para o adulto.
“A automutilação está vinculada a angústias incontornáveis, onde o corte cristaliza, dá uma realidade a algo que é um sofrimento abstrato. O corte faz uma inscrição de algo sem registro. Há uma falha discursiva que apela ao real do corpo”, explicam ao HuffPost Brasil os psicanalistas Diana e Mário Corso, autores do livro Adolescência em Cartaz: Filmes e Psicanálise para Entendê-la (Artmed, 2018).
As mudanças corporais trazidas pela adolescência e o luto do corpo que se conhecia antes também podem se relacionar com o cutting, explicam os psicanalistas. “Digamos que pode também ser uma agressão a um corpo que lhe é uma novidade e que ele não sabe ainda lidar.”
A automutilação pode veicular diferentes mensagens e, portanto, ser desdobrada em vários significados, sempre conectados às particularidades de quem provoca as lesões. Pode ser a expressão de alívio de uma dor emocional; de uma punição dirigida a uma outra pessoa ou a si mesmo; de um cuidado consigo, já que a ferida vai ser tratada; um escape para a raiva, um canal de euforia, um ato que acalma ou mesmo uma maneira de sair de um estado de entorpecimento. No total, o psicólogo canadense E. David Klonsky, da Universidade de British Columbia, identificou 13 funções na prática do cutting, lembra Aragão Neto na entrevista ao CVV. “Dizem: eu não tolero, é insuportável para mim naquele momento e eu me mutilo para o alívio dessa dor emocional. É um discurso paradoxal para as pessoas leigas imaginar como alguém precisa se machucar para tentar se livrar de uma dor emocional, mas é exatamente essa a principal função que os jovens alegam.”
Justamente por não trazerem uma motivação única ou lógica, os cortes, ferimentos e queimaduras precisam ser “escutados”, mais do que vistos. São pedidos de socorro trazidos no corpo, mas estigmatizados por uma sociedade que rejeita a vivência do sofrimento e que demanda sucesso a todo custo.
Aragão Neto adverte: “Nós não podemos dar uma resposta simples ou simplista para algo tão complexo, que gera uma angústia dessa natureza. Não estamos falando de uma angústia comum, corriqueira. Não é algo como ‘eu tirei uma nota baixa na minha escola’ ou ‘eu tive uma discussão com meu melhor amigo e de repente fiquei triste um dia ou dois’. Estamos falando de uma dor profunda, emocional, que chamamos de angústia.”
Segundo o psicólogo, a escuta desses jovens na clínica revela a relação da automutilação com situações que ocorrem dentro da família, como pais ausentes, negligentes ou violentos, além da presença de violência, psicológica, física ou sexual no lar. Fontes de preocupação nas escolas, o bullying e o cyberbulling, disseminado nas redes sociais, também acentuam a vulnerabilidade dos jovens para práticas como o cutting. ”É algo muito cruel e um grande fator de risco para comportamentos autodestrutivos. Quando você tem o bullying presencial, juntamente com o cyberbullying, essa potência fica ainda maior.” Pais em sofrimento e crises econômicas são outros fatores que podem contribuir para o sentimento de desespero dos adolescentes. “Todos esses fenômenos ocorrem em função de uma interação muito complexa de vários fatores.”
Automutilação e relação com suicídio
Assustadora para os adultos e para a sociedade como um todo, a automutilação não necessariamente configura um flerte com o suicídio, mas requer cuidado porque pode levar à morte por conta da intensidade dos ferimentos.
“Os cortes e pequenas sangrias constituem problemática diferente, pois costumam ser assuntos íntimos, em geral segredos ligados à angústia. Podem ser comportamentos contínuos e por vezes sistemáticos de automutilação, os quais ajudam a expressar e até a suportar as dores da vida.”
Diana e Mário explicam que a prática de se machucar e a enunciação das fantasias de suicídio podem se associar, mas não têm uma óbvia linha de continuidade. ”É importante esclarecer e discernir, pois a colagem na compreensão desses fenômenos tende a alarmar os pais de uma forma desmedida quanto a adolescentes que às vezes só copiam comportamentos.”
O ato de copiar pode ser percebido por meio do fenômeno de contágio, em que os membros de um grupo se mutilam, como um ritual de entrada ou pertencimento. “Tem uma estatística internacional que mostra que em torno de 18% das pessoas que se mutilaram o fizeram em grupo, na presença de outros, e relataram que começaram o comportamento autolesivo por causa do efeito de contágio. Na adolescência, nós sabemos que existe uma necessidade muito grande de se formar uma identidade própria e de pertencer a grupos”, esclarece o psicólogo Aragão Neto.
Seja por pertencimento, por solidão ou por quaisquer outros motivos, a automutilação cria marcas ainda mais profundas em uma ferida já vulnerável. Tais pedidos visíveis de ajuda têm a possibilidade de vir pela palavra, não pelo corpo; porém, além de um tratamento psíquico, é necessário que algumas mudanças sejam feitas, especialmente no que concerne às frustrações.
Aragão Neto afirma que é preciso estimular o desenvolvimento de habilidades emocionais para que os jovens possam lidar com as dificuldades do mundo, já que é impossível poupá-los dos problemas e dores. “Uma opção pode ser trabalhar com elas em casa e na escola para que desenvolvam resiliência e habilidades sociais e emocionais para lidar com bullying e cyberbullying, com perdas, com frustrações, para aprender a resolver conflitos sem se machucar e sem machucar o outro.”
Diana e Mário acrescentam que é preciso falar sobre o mal-estar inerente e incontornável que faz parte da condição humana:
“O essencial é estar aberto a entender a dor de existir. Vivemos em um tempo competitivo, agressivo, somos mais um produto à venda, temos um auto-marketing a fazer. Portanto, não podemos mostrar-nos frágeis, falíveis, inseguros, deprimidos, com dúvidas. No dia em que entendermos que os perdedores somos todos, talvez isso crie um mundo em que as pessoas não se sintam peças falhadas.”
https://www.huffpostbrasil.com/entry/automutilacao-jovem_br_5c374a88e4b05cb31c3fe7ed