Nas minhas buscas sobre materiais acerca do comportamento suicida, encontrei este trabalho que chamou a minha atenção pelo título.
“HOJE EU RESOLVI DEIXAR O MUNDO”: narrativas de
suicídio
em Guarapuava-PR nos anos 1950
Autora: Kety Carla De March (Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná. Professora colaboradora na Universidade Estadual
do Centro-Oeste).
RESUMO: Este artigo analisa inquéritos policiais sobre mortes consideradas pela polícia como
suicídio em Guarapuava, região central do Estado do Paraná, na década de 1950. Buscamos
problematizar as construções discursivas dos suicidas, nas vezes em que deixaram cartas, e das
testemunhas ouvidas no inquérito a respeito da morte auto infringida. Essas narrativas sobre a morte
estavam permeadas de justificativas para o ato cometido e nelas pudemos adentrar ao espaço do que
chamamos de “hierarquia da dor”, ou, aquilo que era considerado como motivo legítimo para uma
ação entendida como extrema. Numa sociedade da medicalização dos corpos em que o objetivo
principal é postergar ao máximo a morte, o que poderia explicar um suicídio? As narrativas permitem
conhecer os aspectos sociais que exerciam pressões sobre os indivíduos e que eram partilhados entre
estes e associados especialmente à incapacidade de realização diante dos papéis sociais e sexuais, o
que exige diálogo com a categoria analítica de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Suicídio; Gênero; Masculinidades; Feminilidades.
"O que levava uma pessoa ao suicídio no interior do Paraná nos anos 1950? A
perspectiva das relações de gênero, como fenômeno social, permite a problematização das
justificativas encontradas pelas testemunhas para os suicídios. Wadi e Souza discorreram
sobre a escolha do debate entre suicídio e relações de gênero da seguinte forma:
Por que um indivíduo resolve abandonar a vida cometendo suicídio? Desencontros
amorosos, ciúmes, doenças avançadas, remorso, raiva, vingança, vergonha, orgulho
ferido, solidão, problemas financeiros, dívidas, alcoolismo aparecem como
motivações de suicídio ocorridos na região da comarca de Toledo, no estado do
Paraná. Nas, em geral, curtas e fugazes mensagens de adeus deixadas por alguns dos
que cometem a autoviolência provocando a própria morte ressaltam fragmentos
autobiográficos que remetem à construção de sujeitos marcados pelas relações
socioeconômicas e culturais – entre as quais as relações de gênero – dominantes em
certo tempo e lugar" (p. 06).
"Grande parte dos inquéritos se referia à ação do suicida como ato tresloucado. Nesses casos, houve pouca preocupação por parte da equipe investigativa em determinar as motivações para a ocorrência do suicídio, o que poderia retirar a dúvida sobre a real natureza da morte. Esse silêncio sobre a explicação para a morte voluntária poderia ser resultado de uma instrução processual, assim, delegados quando tomavam depoimentos de testemunhas, não perguntavam a estas se elas conheciam os motivos que teriam levado à morte, ou porque esses mesmos atores ouviam apenas o depoimento dos policiais que atendiam as ocorrências, ou de peritos que analisavam o local do crime. Essas testemunhas muitas vezes não conheciam o suicida e pouco ou nada poderiam relatar sobre as “tristezas” que afligiam a vítima. Para chegar a esse conhecimento era necessário ouvir amigos e familiares do morto, aqueles que com ele conviviam e partilhavam de suas angústias. Muitas vezes eram inqueridas pessoas que apenas tinham ouvido por terceiros relatos da morte" (p. 07).
"Vejamos o caso da morte de Pedro que não teria suportado ser abandonado pela mulher com quem mantinha relacionamento amoroso após ter ficado viúvo. De acordo com um dos filhos de Pedro, a causa da morte do pai “foi pelo fato de ter sido abandonado por uma mulher que vivia já há algum tempo em sua companhia amasiada; que seu pai era homem forte fisicamente e trabalhador não sofrendo de doença alguma que pudesse desgostá-lo da vida” (fl. 08). O filho de Pedro procurou justificar a ação do pai e ao fazê-lo apresentou algumas das características de um suicídio aceitável: o abandono, a fraqueza física, a ausência de trabalho e a doença incapacitante. Esse jovem, ao contrário da medicina da época, não considerou a loucura como uma das possibilidades de morte do pai. Ele se amparou, para a explicação, em elementos externos que poderiam levar um homem a uma tristeza tamanha a ponto de optar pela morte. Ao fazê-lo, imprimiu ali suas próprias convicções sobre sofrimento, angústia, medo da não adequação que eram recorrentes entre uma parcela da população masculina naquele contexto" (p. 12).
"Em ambos os casos, de homens ou mulheres,
observamos que as testemunhas procuravam evidenciar a medida do suportável e aquilo que,
ao ver dessas pessoas, poderia levar um sujeito ao suicídio. Essa hierarquia da dor era,
podemos entender, partilhada pelas pessoas e não vivida apenas pelo suicida. Ao buscarem
justificativas para a ação do suicida, as testemunhas refletiam em suas falas o que também
lhes afligia, pois partilhavam com o morto as mesmas experiências e pressões sociais,
compreendendo que determinadas pressões poderiam ser insuportáveis. Falar sobre a morte
do outro era, para essas testemunhas, um exercício de empatia e de auto regulação" (p. 23).
Texto disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24532
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