domingo, 9 de outubro de 2016

Quem avisa não está blefando 
Se alguém fala em se matar, é preciso dar atenção e não deixar a pessoa sozinha, dizem especialistas

PUBLICADO EM 04/09/16 - 03h00

JOANA SUAREZ

Se uma pessoa falar que vai se matar, acredite, apoie e não a deixe sozinha. Essa foi, talvez, a lição mais repetida à reportagem por psicólogos, psiquiatras e pessoas que perderam parentes. Expressões como “quem fala não faz” ou “cão que ladra não morde” são mitos sociais que andam lado a lado com o tabu do suicídio. A amiga de Raquel*, 45, falou tantas vezes que se mataria nos últimos anos que ninguém acreditava que isso ocorreria: Jaqueline* tentou quatro vezes com remédios, drogas e se jogando do carro, até que, há poucos meses, na quinta tentativa, ela conseguiu. “Não deu tempo de acudi-la”, expôs Raquel.

Jaqueline morreu um mês e meio antes de completar 42 anos. Quando jovem, sofria com sua indefinição sexual e começou a usar drogas, conta Raquel. Ela chegou a ter uma vida estável, mas perdeu tudo. O tratamento para depressão não progredia. Raquel a ouvia por horas, até de madrugada. “É um negócio que suga a gente, eu só podia ouvir, mas não podia sentir por ela. A família já não tinha mais paciência. Se eu conhecesse mais sobre isso, talvez pudesse ter feito alguma coisa”, desabafa Raquel, acrescentando, emocionada, ainda “esperar as ligações” de Jaqueline.

O psiquiatra Humberto Corrêa afirma que o suicida quase sempre conta que está pensando em se matar, e é um erro não prestar atenção às ameaças e aos sinais. Segundo ele, “mais ou menos 20% da população, em algum momento da vida, vai pensar em suicidar-se, mas não quer dizer que vá fazê-lo”.

Para o professor de psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Nilson Berenchtein Netto, existem pessoas que vivem as mais diversas situações, mas só encontram como alternativa tirar a própria vida. “Quais são as condições de vida e de saúde delas?”, questiona.

A transexual Fernanda Tolotto, 26, não queria “viver o resto da vida” de um jeito que ela não se reconhecia. Em 2009, ela tentou se enforcar, mas o telhado arrebentou. Em 2012, cortou os pulsos. Nas duas vezes, havia sido iludida de que conseguiria fazer a cirurgia de redesignação sexual. Ela continua na fila de espera da operação, fazendo tratamento hormonal e terapia psicológica. “Meu sonho é sair da sala de cirurgia uma nova pessoa. Mas jamais tentarei me matar de novo”.

Já Kátia*, 34, decidiu suicidar-se por acreditar que não suportaria o fim do primeiro relacionamento homossexual, que a fez mudar radicalmente de vida. Ela abandonou o noivo para investir na mulher pela qual se apaixonou, mas o “sonho” durou seis meses. “No dia do término, tudo perdeu o sentido em fração de segundos. Num ato impensado, comprei veneno de rato e fui para a igreja, desafiando Deus por ter me deixado viver aquilo. Foi minha primeira relação de amor, meu primeiro orgasmo”. Kátia foi socorrida pela amiga com quem falava ao telefone na hora. Passado o susto, a família a levou para tratamento diário em clínica psiquiátrica durante um mês, período que ela define ser uma lacuna na vida, pois não se lembra de nada. “Tenho muita mágoa, mas entendo eles terem feito isso”.

Após dez anos daquela decisão, Kátia, que já tinha recuperado sua rotina, enfrenta a morte de seu pai, um grande amigo. O pensamento suicida foi, então, retomado, mas agora, em suas palavras, seria uma “autoeutanásia”. “Eu tinha uma dor incurável. Comecei a planejar cada passo da minha morte, até que encontrei, por acaso, a psicóloga com quem me consultava antes. Olhei para ela e falei: ‘eu preciso de você’”. Ano passado, Kátia tatuou no braço: Acredite-se.

*Nomes fictícios

Saiba mais

Segunda. Nesta segunda (5), O TEMPO traz outra reportagem sobre o tema, falando mais de prevenção, percurso suicida, rede de tratamento e onde buscar ajuda.

Repetição. Uma das razões pela qual se deixou de escrever e noticiar suicídios é o risco de repetição. No século XVIII, um romance do alemão Goethe (“Os sofrimentos do jovem Werther”) trazia um protagonista suicida que teria “inspirado” a morte de diversos jovens, provocando o “efeito Werther”.

Análise. Especialistas, porém, avaliam que abordar o suicídio, as formas de prevenção e os números alarmantes é necessário e não determina outras mortes. “Na verdade, é uma censura. É como impedir que se fale sobre sexualidade na epidemia da Aids”, afirma a psicóloga Fernanda Marquetti.

História

A morte autoprovocada era vista como o pior dos pecados – nos antepassados, proibia-se que o suicida fosse enterrado em cemitérios cristãos. Também chegou a ser considerada crime de assassinato, com punições como confiscar os bens da pessoa que morreu, arrastar em praça pública e condenar quem tentava se matar. Foi santo Agostinho que, no século IV, criou a palavra suicídio (homicídio de si). Apenas no século XX, a Igreja Católica passou a aceitar o suicida por acreditar que ele se arrependia no último momento e era doente mental. As mudanças, porém, ainda não foram suficientes para afastar a rejeição em torno do assunto.

Diferenças

Estimativas mundiais mostram que os homens representam a maioria das mortes autoprovocadas, mas são as mulheres que mais tentam. A explicação se dá porque eles costumam usar meios mais agressivos, e elas buscam tratamento, falam mais o que sentem. Para Fernanda Marquetti, esses dados indicam que o suicídio está relacionado a uma série de circunstâncias socioculturais. “As diferenças de como homem e mulher se matam envolvem o relacionamento masculino e feminino no mundo”. Ela cita também que as mortes podem estar relacionadas a situações extremas de sofrimento no trabalho, como ocorre na China, onde há jornadas exaustivas.

VERTENTES
Sintoma psiquiátrico ou questão social?
Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 98,5% das vítimas de suicídio tenham transtornos mentais – depressão, uso de drogas, esquizofrenia ou psicose. Sobre o restante (1,5%), não se chegou a uma conclusão. Estudiosos da psiquiatria e da psicanálise investigam fatores genéticos e biológicos para explicar as mortes autoprovocadas. “O suicídio vem sempre de uma doença mental. Mais ou menos 35% dos casos estão ligados a transtorno bipolar e a depressão”, afirma o psiquiatra Humberto Corrêa. Para ele, o tratamento rápido com medicamentos evitaria as mortes.

Outra corrente de especialistas aposta no fator social do suicídio, em que os remédios apenas mascaram o problema e não mudam a realidade que produz na pessoa o desejo de se matar. “Dizer que as pessoas estão se matando porque são loucas, é resolver o problema de uma forma individual, e, assim, a indústria farmacêutica lucra, essa que, inclusive, produz medicamentos que têm como efeito colateral a ideação suicida”, afirma o psicólogo Nilson Berenchtein Netto. Contra o que ele chama de “ideologia em cápsulas” e “naturalização do transtorno psíquico”, Netto propõe “criar outra forma de sociedade, que não seja baseada no capitalismo, na exploração e na propriedade privada”.

Na mesma linha, a professora de psicologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que atua na rede de saúde mental Fernanda Marquetti arrisca dizer que, por ser visto como sintoma de doença psiquiátrica, a maior parte dos suicidas recebe esse diagnóstico, por isso o dado de 98,5%, coletado em hospitais.

“Mas o suicídio está no mundo. Pesquisas fora do hospital mostram que são pessoas comuns, donas de casa, trabalhadores. É uma manifestação de sofrimento humano, não de transtorno. Alguém que vive numa favela, trabalha oito horas, gasta cinco (horas) no ônibus, começa a beber e tenta suicídio, estava deprimido? Há uma banalização da depressão”, questiona. “Se tomar antidepressivo fosse eficaz, essa pessoa nunca tentaria suicídio”, conclui. (JS)

 http://www.otempo.com.br/cidades/quem-avisa-n%C3%A3o-est%C3%A1-blefando-1.1365421


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