Por Amanda Mont’Alvão Veloso
"Do suicídio, eu muito ouvia e pouco falava. Me parecia pesado demais, muito amargo para ser proferido. O conheci pela música e pela literatura, e depois pela perda de pessoas queridas. O assunto já não era distante, imaginário: estava ali, na realidade.
Na escola, aos 13 anos, vi o peso de seu silêncio sufocado. Um garoto do ensino médio havia tentado. Ninguém falava nada. Ninguém tentava colocar palavras para representar aquela perplexidade. Mas tudo parecia gritar, principalmente o desespero do aluno. O que doía nele que era tão urgente e insolucionável a ponto de querer se matar?
Ao estudar jornalismo, mais silêncio: não se fala de suicídio na imprensa porque isso 'estimula' outras tentativas. Muito taxativo e generalizante, sem espaço para perguntas. Parecia uma recomendação muito desconectada da realidade e do sofrimento que um suicídio representa.
Na pós-graduação, veio o contato com a psicanálise e uma visão revolucionária de mundo, pelo menos pra mim: cada pessoa é absolutamente singular, inclusive na forma como vivencia o sofrimento. Se antes havia passado pela minha cabeça que o suicídio era um ato de covardia ou desistência, ali estava a empatia, mostrando que tentar sentir a dor do outro não tinha nada a ver com minha ideia de mundo ou questões narcísicas minhas, mas sim, com a realidade daquele outro. Uma pessoa em estado de extremo desespero e vulnerabilidade, a ponto de não conseguir enxergar saída para o seu sofrimento. Uma pessoa que precisava ser ouvida e acolhida, pois talvez não desejasse a morte se estivesse em melhores condições. Meu olhar sobre o suicídio havia se transformado. Pessoas precisavam de ajuda e possivelmente não sabiam com pedi-la. Ou não eram encorajadas a fazê-lo. Afinal, não falamos de suicídio.
Como editora e repórter de saúde mental na seção Equilíbrio, do site HuffPost Brasil, comecei a pesquisar sobre o silêncio em torno do suicídio para uma série de reportagens que abordassem o assunto de maneira direta e com respeito. Nossa ideia era mostrar o aumento preocupante do número de mortes autoinfligidas – a cada dia, pelo menos 32 brasileiros se matam – , a dificuldade de se abordar a questão e o efeito transformador da possibilidade de uma pessoa conversar sobre suas ideias suicidas: se houvesse prevenção, 9 entre 10 pessoas ainda estariam vivas, de acordo com a OMS.
Com a aproximação ainda maior da Psicanálise – há alguns anos decidi fazer formação na área –, constatei o poder transformador da fala, que muitas vezes dissolve sofrimentos e nomeia emoções bastante angustiantes. O percurso entre a dor e a possibilidade de colocá-la em palavras é uma espécie de tradução daquilo que até então não podia ser dito. Assim parecia ser o sofrimento que precede muitos suicídios: a impossibilidade de transformar a experiência desesperadora em palavras. O trabalho de prevenção do suicídio feito pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) me pareceu ainda mais apropriado, pois a organização lida diariamente com o sofrimento humano e coloca, em prática, o belo exercício de empatia que é ouvir, sem julgamentos, uma pessoa em estado de desespero.
Ao pesquisar sobre o assunto e conversar com voluntários do CVV, psiquiatras, psicanalistas e psicólogos, percebi que a prevenção podia ser uma realidade, mas a conversa sobre o tema precisava ser expandida, sobretudo para além dos círculos ligados à saúde mental.
Porém, o suicídio ainda é um grande tabu em nossa sociedade, que ora reserva ao assunto o silêncio de quem não pode ser conhecido, ora o aborda com sensacionalismo e detalhes explícitos, como é o tratamento geralmente dado àquilo que supostamente só atinge o outro – jamais a gente.
O distanciamento do assunto por muitas pessoas mostrava não só a dificuldade de lidar com a morte, mas também o estigma de que a ideia de suicídio só ocorreria a alguns – aos 'fracos'. Esta ideia é bastante equivocada: pensar em suicídio é muito mais comum do que se pensa e pode ocorrer com qualquer um de nós. O que é realmente alarmante é que muitas pessoas sequer têm estímulo a admitir o pensamento e desabafar sobre ele, o que diminui bastante as possibilidades de fazer algo a respeito.
Principalmente por parte da imprensa, o silêncio sobre o suicídio acabou sendo justificado pelo temor de que falar sobre o assunto seria uma maneira de incentivar o ato, em uma espécie de contágio. O escritor alemão Goethe precisou vir a público se defender porque uma centena de jovens se suicidou depois de ler o livro Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774, em que o personagem principal se mata. A imitação de suicídios passou a ser chamada de Efeito Werther na literatura médica.
A percepção de um 'contágio' em Viena, na década de 80, deu início a um manual para os profissionais da imprensa sobre como divulgar suicídios. Nos cinco anos seguintes à publicação, a taxa de suicídios no metrô austríaco caiu 75%, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Em muitos lugares, a cautela recomendada na cobertura jornalística havia se transformado em silêncio perigoso. É preciso falar sobre suicídio, mas com responsabilidade e discrição. Em um relatório da OMS divulgado em 2014, o órgão inclui a cobertura sensacionalista da mídia como um fator de risco, seja por contribuir com 'imitações' ou com a estigmatização das pessoas.
Tais cuidados não precisam se tornar um dogma desencorajador. Para colocá-los em prática, a melhor bússola é a empatia. Como seria se estivessem falando de você e da sua vida? Afinal, falar de suicídio não é falar de algo abstrato, com o qual não temos relação de identificação. Falar de suicídio é, necessariamente, falar de uma pessoa, de um sujeito com história própria, cuja morte vai afetar outras vidas.
É falar de dor, de lamentação, de pedido de ajuda, do luto difícil que as famílias e amigos vão precisar fazer. Não há objetividade que dê conta de digerir um acontecimento assim. Assim como a morte, lidar com o suicídio exige delicadeza e respeito. Diariamente, somos incentivados a passar por cima de nossas emoções e a tratá-las como um anexo de nossas vidas, como se assim nos tornássemos práticos e infalíveis aos imprevistos. Mas a vida é feita de imprevisibilidade, de contato com o outro e de perdas que geram sofrimento. O mínimo que podemos fazer é nos dar tempo – e dar tempo e acolhida ao outro – para que possamos tratar as feridas".
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