domingo, 25 de junho de 2017

Como '13 Reasons Why' nos alerta das metáforas do desespero adolescente

Especial para o HuffPost Brasil


A série '13 Reasons Why' aborda o sofrimento e o suicídio de adolescente.
"Oi, é a Hannah. Hannah Baker."
Assim começam as últimas palavras da protagonista de 13 Reasons Why, produção original da Netflix que estreou na última sexta-feira (31).
Nó na garganta para uns, ameaça para outros, a desconfortável despedida de Hannah é um convite urgente da série para pensarmos os efeitos das palavras na vivência adolescente em um contexto de emoções subestimadas.
A gravação, deixada em analógicas fitas K7, lista os 13 motivos pelos quais Hannah, de 17 anos, decidiu terminar seu sofrimento com um suicídio. Cada motivo corresponde a um episódio.
Apesar de este texto conter alguns spoilers, o suicídio não é um deles. É a premissa da narrativa, baseada no livro homônimo de Jay Asher, de 2007, e que no Brasil foi lançado com o título Os 13 Porquês (Ática, 2009).
Enquanto o colega Clay Jensen, de 17 anos, ouve as fitas, acompanhamos a trajetória de Hannah, do próprio Clay e de alguns alunos na Liberty High School e nos espaços que orbitam a escola de ensino médio, como a lanchonete frequentada por eles (Monet's), as festas e as casas de cada um.
Dois lares são especialmente abordados: o dos pais de Hannah, enlutados e marcados pela ausência brutal da única filha, e da família de Clay, cujos pais tentam traçar alguma comunicação com o filho que nada revela.


Divulgação/Netflix
Com sua trama e linguagem adolescentes, 13 Reasons Why à primeira vista pode parecer uma novelinha de angústias particulares, mas desenvolve profundidade e temáticas obrigatórias não só para pais de crianças e adolescentes, como também para a sociedade como um todo.
Nos EUA, a assustadora recorrência de tiroteios em escolas nos leva a pensar em um problema localizado, mas o bullying e o cyberbullying presentes nos colégios brasileiros estão relacionados a desfechos igualmente trágicos, como automutilações, agressões e assassinatos.
Mais do que alarmante, a narrativa é uma tentativa de entendimento do suicídio para fins preventivos e também reflexivos. Sinais que passam despercebidos, metáforas de desespero não assimiladas e sofrimento silenciado costumam vir à tona tardiamente como pedido de ajuda, gerando ainda mais angústia diante do irreversível.
Longe da ficção, Sue Klebold, mãe de Dylan Klebold, um dos adolescentes responsáveis pela tragédia na escola americana Columbine, em 1999, se recrimina por não ter percebido as intenções do filho que, antes de se suicidar, atirou e matou colegas da escola:

Seus amigos mais próximos, garotos com quem ele conviveu todos os dias durante anos, não sabiam quanto ele estava desesperado. Alguns se recusam a acreditar nessa caracterização até hoje. Mas eu era a mãe dele. Eu deveria saber.Sue Klebold, no livro 'O Acerto de Contas de uma Mãe – A Vida Após a Tragédia de Columbine'
O suicídio pressupõe uma dolorosa especulação: por que uma pessoa amada resolve desistir da própria vida? Em um dos momentos mais comoventes da série, a mãe de Hannah, Olivia, lamenta a ausência de um bilhete que dê algum tipo de justificativa para a decisão da filha.
Nem Olivia nem o marido, Andy, conseguem conciliar a memória que tinham da garota com o presente devastador que agora precisam enfrentar. Para tentar suprir essas lacunas, entram na Justiça pedindo a responsabilização da escola.
13 Reasons Why não deixa de ser um preenchimento ficcional em cima de uma angústia, uma fantasia de explicação que permite dar sentido ao que aconteceu -- pois na vida real não temos tais respostas, mesmo quando bilhetes ou posts nas redes sociais são deixados.

Transbordamento sem aviso prévio

Nas 13 motivações de Hannah, narradas como acontecimentos que vão aumentando a falta de perspectiva no futuro, o suicídio não é apontado como desfecho dramático de um acontecimento único, como o cyberbullying de uma foto mal-intencionada, uma humilhação na frente de toda a classe ou o fim de um relacionamento. "O suicídio é o desfecho de uma série de fatores que se acumulam na história do indivíduo", esclarece a Associação Brasileira de Psiquiatria.
A ideia suicida vem do acúmulo de situações, como um copo que vai se enchendo e que transborda com uma gota d'água (a perda de um emprego, por exemplo), levando à sensação de total impotência e desespero, explicaram ao HuffPost Brasil os voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), que há 55 anos atua na prevenção do suicídio no Brasil.

"Dificuldades financeiras, assim como guerras, ditaduras e outros cenários críticos podem ser fatores de pressão externa e 'adicionar água ao copo' de muitas pessoas, mas não podem ser apontados como motivos exclusivos de suicídio. Cada pessoa tem um limite próprio e reage de maneira diferente aos mesmos estímulos, então é essencial sempre encontrar maneiras de 'esvaziar o copo' antes que chegue na borda."
Esvaziar o copo, porém, passa pelo reconhecimento de que este esteja cheio, e na vivência adolescente, em que as emoções particulares de cada um ficam obscurecidas, camufladas ou disfarçadas, o transbordamento chega sem aviso prévio.
Comportamentos que poderiam ser interpretados como sinais, como o silêncio ou a agressividade, são reduzidos à faixa etária: "isso é fase, vai passar". Como se a adolescência em si justificasse os sintomas apresentados...
A transição de uma criança para o universo adulto jamais deveria ser tratada como banal, e esta parece ser a maior contribuição de 13 Reasons Why.
No mundo adulto da independência e das responsabilidades cabem a raiva, a tristeza, o medo e a dissimulação. Por que haveria de ser diferente no "não-lugar" que é a adolescência, esse período da vida em que um pé está no infantil, e o outro ensaia passos adultos?
A intensidade dos sentimentos tem resposta proporcional à maneira como as pessoas reagem ao que é dito para elas. Uma ofensa em um vulnerável período de constituição da identidade faz reverberar inseguranças e frustrações, e só mesmo a ressignificação daquilo que machuca poderia dar ou devolver o sentimento de integridade.
Hannah tenta colocar em palavras, para destinatários específicos, as suas motivações. Curiosamente, ao terminar a fita 12, Hannah sente certo sentido em viver. Mas o que ocorre é a mortal impossibilidade de conseguir conversar com os pais, com Clay ou com o conselheiro da escola.
Ela não encontrou escuta para seu sofrimento nem insistiu em tentar comunicá-lo, muito possivelmente por não saber colocá-lo em palavras.
Crianças invariavelmente recorrem aos jogos e brincadeiras para expressar o que se passa em seus mundos internos. Nem a mais aparente eloquência de um adolescente, porém, pode garantir que ele consiga dar vazão às suas emoções. Ao mesmo tempo, a escola dela falhou em fazer a escuta sensível daquilo que não se consegue pronunciar.


A Comunicação Indispensável

As redes sociais se apresentam como poderosos meios de comunicação, mas como vemos no cyberbulling de Hannah, também configuram novas formas de sofrimento e ressaltam, para mais pessoas, desamparos e desesperos alheios.
O público suplanta o íntimo, e prevalecem as aparências em detrimento de um interior necessitado, mas sem a gramática necessária para pedir ajuda.
Clay demonstra, em vida, essa falta de comunicação dos próprios sentimentos, reservando às lágrimas no chuveiro e à raiva as únicas possibilidades de extravasar seu (temporariamente) arruinado mundo particular.
Falar de suicídio é falar de prevenção; é dar nome ao que atormenta e ao que se apresenta como impossível. A cada dia, pelo menos 32 brasileiros se matam, segundo dados do Ministério da Saúde e da OMS.
A prevenção poderia salvar a vida de nove entre dez pessoas que hoje se suicidam. A produção da Netflix parece encampar essa mensagem com personagens que podem ser reconhecidos em escolas de todo o mundo.
O estímulo à prevenção surtiu efeitos, pelo menos no Brasil. Segundo o CVV, desde a estreia do série, os pedidos de ajuda ou de conversa enviados por e-mail aumentaram em mais de 100%, com 25 mensagens mencionando 13 Reasons Why.
Ainda que apresentada como série adolescente de mistério, com personagens carismáticos e algumas tiradas de humor, 13 Reasons Why não foge do incômodo e da perplexidade provocados por um suicídio. O tempo todo se especula em torno da narrativa de Hannah, até que o suicídio em si abruptamente nos coloca na posição de encarar o fato, a decisão, a dor e a finitude que vem com ele.
O que a ficção da série consegue é um debruçar nosso sobre o insuportável da realidade, sobre aquilo que não se diz, nem tampouco se escreve. Sobre a angústia da ausência de respostas, e sobre a inibição de perguntas que podem apontar novos caminhos diante do sofrimento insuportável, porém, reversível.



Por que luto apaixonadamente pela Prevenção do Suicídio?

"Se a vida de alguém é tão horrível a ponto de querer morrer, por que impedi-lo?"

Muitas vezes me fazem essa pergunta ou alguma variação desta questão. Pois bem, devo já ir dizendo que sou um apaixonado pela prevenção do suicídio. Eu sei que minha posição muitas vezes desencadeia a contrariedade de alguns que pensam que as pessoas deveriam ter o direito de acabar com sua própria vida sem interferência de outros bem-intencionados. Entretanto, em minha opinião, existem muitas razões para impedir alguém de suicídio.
O motivo mais importante para evitar o suicídio é que as crises suicidas, embora terríveis ​​e dolorosas, são quase sempre temporárias. Considere que 90% das pessoas que sobrevivem a uma tentativa de suicídio não morrerão por suicídio. Repito: 90% das pessoas que sobrevivem a uma tentativa de suicídio não virão a morrer por suicídio. Esse número é muito revelador. Mesmo entre as pessoas que desejaram morrer tão fortemente a ponto de tentar acabar com suas vidas, a maioria vai escolher viver.
Enquanto uma pessoa estiver viva, as coisas podem mudar para melhor. As situações mudam. E mesmo que sua situação externa seja imutável, é possível sim descobrir coisas que tornem sua vida digna de ser vivida. Existe sempre a possibilidade de encontrar formas de lidar com essa situação, ou é possível passar a apreciar coisas diferentes na vida. É possível até encontrar um propósito na vida que dê um significado a uma perda ou a um trauma sofrido.
Kevin Hines é um defensor da prevenção do suicídio que, anos atrás, saltou da Ponte Golden Gate, o local em que vem ocorrendo a cada ano a maioria dos suicídios nos Estados Unidos. A morte é quase certa quando se pula da ponte. É sabido que mais de 1.500 pessoas já pularam, e apenas 30 ou mais são conhecidas por terem sobrevivido. Então, quando Kevin pulou da Ponte Golden Gate, ele estava absolutamente decidido a morrer. E, no entanto, mesmo com essa intenção, no momento em que ele pulou da ponte, ele se arrependeu instantaneamente de sua decisão.
Sua experiência é uma das muitas (incluindo minha própria história) que ilustra que o desejo de morrer é fluido. Vem e vai. Vem e vai em graus variados. A grande maioria das pessoas que são salvas do suicídio ficam agradecidas, mais cedo ou mais tarde, por estarem vivas.
Outra razão importante para evitar o suicídio é porque, apesar do que afirmam os defensores do suicídio racional, em quase todos os casos, o suicídio é um ato decididamente irracional. A pesquisa indica consistentemente que 90% das pessoas que morrem por suicídio estavam com uma doença mental diagnosticável e possível de ser tratada no momento da morte. A doença mental distorce o pensamento. O que é ruim pode tornar-se bom e vice-versa. Muitas vezes, mas muitas vezes mesmo, quando a saúde mental de uma pessoa melhora, o desejo de morrer desaparece por completo.
Algumas pessoas contestam as altas estimativas de doenças mentais no suicídio. Mas ainda que presumamos que nem todos os que morrem pelo suicídio tenham uma doença mental, temos que considerar que outras coisas além da doença mental também podem distorcer profundamente o pensamento de alguém, como uso de substâncias, a privação de sono e uma experiência traumática.
Muitas pessoas que abordam essas questões reconhecem que também já consideraram seriamente o suicídio ou fizeram uma tentativa, mas atravessaram essa difícil fase e hoje se juntam, numa comunidade de esperança, para contar sobre isso".
 
Texto original:  Why Prevent Suicide? Here Are My Reasons. Written by  Stacey Freedenthal, PhD, LCSW  /  http://www.speakingofsuicide.com/2013/05/19/why-stop-someone-from-suicide/


Texto livremente traduzido e adaptado.

domingo, 18 de junho de 2017

Vínculo afetivo: o fio condutor da vida

Por: Juliana Bencke
Data: 03/06/2017



"As mudanças no corpo, os desafios da formação da própria personalidade e um misto de ansiedade e dúvidas sobre o futuro fazem, da adolescência, uma fase de descobertas e desafios. Nesse labirinto permeado por dúvidas e paixões, o vínculo afetivo com familiares, amigos ou pessoas que sirvam de referência ao jovem é fundamental para garantir que ele siga no caminho da vida de forma saudável. 
Além das características próprias da adolescência, questões culturais e socioeconômicas, relações familiares conflituosas e a falta de perspectiva fazem muitos jovens se 'perderem no labirinto' e acreditarem que a solução é pôr fim à própria vida.

O resultado é um problema crescente, que preocupa profissionais da área de saúde mental: desde o início do ano, cinco adolescentes de 13 a 18 anos tentaram o suicídio em Venâncio Aires, segundo dados da Vigilância Epidemiológica do município. Além disso, um menino de 16 anos tirou a própria vida, em abril, e outros buscaram na automutilação o alívio de uma dor psicológica - casos que sequer chegam a ser contabilizados. 

Em meio a esse contexto, especialistas apontam a importância do vínculo familiar, do apoio social e da adoção de hábitos positivos para a saúde mental, desde a infância, para a prevenção do suicídio. 'Para que eu me sinta bem, é preciso alguém que me dê valor, que me faça existir através de um olhar, um gesto de amor. É isso que legitima o sentimento de pertencimento ao mundo', exemplifica o doutor em Psicologia Luiz Carlos Teixeira Bohrer, do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas). Segundo ele, proteger a vida dos adolescentes exige que se (re)construa esses vínculos, se não por meio da família, de outras formas.
Desespero
A psicóloga Gabriela Ballardin Geara, do Centro de Atenção Psicossocial (Caps II) também destaca a importância do apoio familiar e social para combater o suicídio - fruto de muito sofrimento. "Costumamos falar em quatro D's para descrever os sentimentos ligados a esse sofrimento: depressão, desamparo, desesperança e desespero", comenta. 
De acordo com ela, a depressão é uma psicopatologia que causa tristeza e baixa autoestima no paciente, gerando a sensação de que ele não tem valor. O desamparo, por sua vez, está ligado ao isolamento social. "Quanto mais isolada a pessoa estiver, mais fácil fica para planejar e executar o suicídio. Por isso que o amparo social é tão protetivo", esclarece. 
A desesperança está ligada a uma visão pessimista da vida, de que as coisas não têm jeito e não há perspectiva de futuro. "O desespero é soma de todo os D's anteriores. Quando a pessoa vê que está sozinha, sente-se mal e pensa que o futuro não vale a pena, desespera-se e busca o suicídio", observa a profissional. 
Se nem sempre é possível evitar o início da depressão, os outros fatores podem ser enfrentados com o apoio de amigos e familiares e o tratamento adequado. 'A pessoa pode até estar deprimida, mas, se tiver amparo social, ajuda da família, uma rede de amigos e a visão de que o futuro vai ser bom, isso a protege. Só se chega ao desespero quando há a soma dos outros fatores, que cria a ilusão de que o suicídio pode resolver alguma coisa.'

Presença familiar
O envolvimento da família também é fundamental no tratamento após uma tentativa de suicídio. Quando adolescentes que tentaram tirar a própria vida são internados no Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), o acompanhamento incluiu o resgate do histórico familiar e de vida do jovem. 'Buscamos entender a construção disso, o que aconteceu para chegar a esse ponto', afirma a psicóloga Susan Artus Dettenborn, gerente assistencial da instituição.
A psicóloga do hospital, Ana Lúcia Oliveira, complementa que, por trás dos casos, sempre estão relações familiares conturbadas. 'Tratar o adolescente sem envolver a família é impossível', enfatiza.

Ajuda gratuita
O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo de forma voluntária e gratuita todas as pessoas que querem desabafar. A conversa ocorre com sigilo total e pode ser feita por telefone, e-mail, chat e Skype, 24 horas por dia. Ligue 188 ou acesse cvv.org.br.

Coloque em prática
- Prevenir o suicídio não significa ter que falar sobre suicídio, constantemente, mas que se invista em saúde mental - uma preocupação que deve começar na infância. 
- Hábitos simples e gratuitos ajudam a promover a saúde mental, como aproveitar momentos em família, brincar com os filhos, ler, conversar, se divertir, descansar, praticar exercícios físicos, deitar na grama, dançar, aproveitar o sol e ter uma alimentação saudável.
- O diálogo e o respeito entre pais e filhos é fundamental para auxiliar crianças e adolescentes. Os pais devem ser presentes e estar atentos ao comportamento dos filhos e a possíveis mudanças. 
- Crianças devem aprender a lidar com a frustração desde cedo, para que, quando cheguem na adolescência, consigam 'elaborar' suas frustrações e elas não signifiquem o 'fim do mundo'. Também é fundamental entender que a vida 'não é um comercial de margarina' e que a 'felicidade plena' exposta nas redes sociais, muitas vezes, não condiz com a realidade. 
- Os pais devem respeitar a individualidade dos filhos, mas precisam estar atentos, devem monitorar o uso da internet e das redes sociais, conhecer os amigos virtuais dos filhos e ver suas publicações. O Kurupira WebFilter é um programa gratuito que limita o acesso a sites e a execução de aplicativos.

*Dicas elaboradas com o apoio das psicólogas Gabriela Ballardin Geara, Camile Luiza da Rosa, Ana Lúcia Oliveira e Susan Artus Dettenborn; da assistente social Ana Paula Bittencourt Pereira; da bióloga e psicopedagoga Mariana Faria Corrêa; e da enfermeira Regina Freitas Marmitt, coordenadora do Caps II.
Por trás do sofrimento, aspectos culturais e socioeconômicos
Embora o Creas não atenda, especificamente, casos de tentativa de suicídio e automutilação entre jovens, as situações acabam chegando ao serviço, o qual realiza atendimento a famílias com situações de violação de direitos. 'É um problema crescente no município. Temos muita dificuldade por não saber ao certo para onde encaminhar esses adolescentes, devido à falta de um Caps Infantil em Venâncio Aires', comenta a coordenadora Bárbara Lúcia Hickmann. 
De acordo com os profissionais do Creas, por trás de tentativas de suicídio e automutilação estão casos de violência intrafamiliar: negligência, abuso, agressão e abandono - seja ele material ou afetivo. 'É comum o sentimento de menos valia nesses adolescentes, além de transtornos depressivos ', observa o doutor em Psicologia Luiz Carlos Teixeira Bohrer. 
O trabalho com grupos de meninas é uma das estratégias de intervenção do Creas, para que elas consigam responder de forma saudável a situações de sofrimento e conflitos familiares. 'É um trabalho preventivo, à medida que pode-se evitar uma tentativa de automutilação ou suicídio. Elas também acabam sendo multiplicadoras, porque intervêm na realidade social delas, na família, na escola', enfatiza Bohrer. 
Os profissionais do Creas esclarecem que a falta de vínculo afetivo entre pais e filhos, que faz com que a família deixe de ser um referencial para os jovens, também recebe influência de condições socioeconômicas como desemprego ou subempregos. 
'Quando os pais não conseguem suprir financeiramente as necessidades familiares ou estão sujeitos a condições de trabalho extremas, precisam se preocupar muito com o sustento e chegam em casa com carga emocional muito pesada, essas crianças entram em risco, porque não se consegue mais exercer a função protetiva da família', salienta a assistente social Juliana Arnt Abichequer Rheinheimer. 
Na opinião de Bohrer, também não se pode esquecer a influência do contexto cultural de Venâncio Aires com histórico de casos de suicídio - ligados, muitas vezes, às próprias famílias dos adolescentes. 'Há alguns anos, antes do Baleia Azul, havia muitos casos no interior de pactos entre os adolescentes com desafios de automutilação e tentativas de suicídio', lembra a psicóloga Caroline de Freitas. 

No início de abril, a psicóloga Camile Luiza da Rosa e a bióloga e psicopedagoga Mariana Faria Corrêa deram início ao projeto Meninas Livres. O objetivo? Promover, por meio de encontros semanais entre meninas, o diálogo sobre questões ligadas à adolescência. 
De lá para cá, todas as quartas-feiras, das 19h30min às 21h, elas se encontram com as adolescentes para discutir assuntos como empoderamento, sexualidade e segurança na internet. 'Víamos as meninas sem muito espaço para falar questões específicas dessa fase, discutir sobre 'coisas de menina'', conta Mariana. 

Ao longo dos encontros, naturalmente, assuntos como o jogo Baleia Azul e casos de suicídio registrados na cidade passaram a fazer parte da conversa. A partir disso, o grupo deu início ao desafio da Baleia Livre, no qual as meninas foram incentivadas a fazer ações simples positivas, como abraçar amigos, fazer declarações de amor por si mesmas e marcar um encontro com alguém que não viam há bastante tempo. 
Além de reforçar a autoestima das adolescentes e o vínculo com amigos, o trabalho desenvolvido no Meninas Livres se estende para além do grupo. Seja em casa ou na escola, as garotas buscam reforçar os vínculos e apoiar-se em suas dúvidas e dificuldades. 

Para Mariana e Camile, o trabalho confirma a possibilidade de atuar de maneira preventiva, em busca de saúde mental. 'Ao se conhecerem e conhecerem outras pessoas, as meninas ampliam sua rede de apoio e cuidado. É importante elas saberem que sempre têm em quem se apoiar. Que há amigos com quem podem contar e conversar sem julgamentos', comenta a bióloga".



domingo, 11 de junho de 2017

Um dos melhores textos que eu já li ...

Carta a alguém em depressão

De alguém que esteve aí onde você está agora, e que quer que você saia, assim como eu saí
Leonardo Collares


Você está vivendo um episódio de depressão. Eu sei porque já estive aí e pode ser que volte em alguma hora. Bem, quero aproveitar este momento em que me encontro aqui do lado de fora para te escrever esta carta com base no eu que já esteve aí e neste outro que um dia pode voltar.
Não tenho a pretensão de te ajudar. Quero apenas te fazer companhia por alguns momentos, como um desconhecido que se senta do teu lado num banco público, reconhece a tua solidão e puxa uma conversa, tentando respeitar sua aflição e tomando cuidado para não perturbar a segurança precária do teu isolamento.


Talvez, enquanto eu fale ou escreva, você continue sentindo uma tristeza, um desânimo e um vazio que te acompanham até demais, só que tudo isso não te impede de trabalhar, de cuidar da vida e fingir que está tudo bem quando a ocasião requer. Ou talvez você esteja paralisado e sozinho, duvidando que possa realmente sair do buraco algum dia.
Quero ser franco contigo, porque sei que nessa condição temos pouca paciência para papo furado. A depressão pode mesmo levar ao suicídio. Em outros casos, ela pode ser uma pena longa e severa, anos e anos de prisão intelectual, afetiva e funcional. A vida se derramando no ralo do tempo.
Acho bom encarar isso. É preciso reconhecer a dimensão desse obstáculo. Primeiro, para nos darmos conta de que essa condição demanda nossa atenção e cuidados imediatos e continuados. Depois, para estarmos seguros de que estão errados aqueles que, por não a terem experimentado, e por estarem mal informados, subestimam ou estigmatizam a depressão. Com isso, contribuem para criar dificuldades ao enfrentamento adequado de um problema de saúde pública mundial. Também contribuem para agravar o sofrimento de pessoas próximas. Eu tinha minhas dúvidas quando estava aí onde você está, mas hoje é bastante claro para mim: depressão não é sinal de fraqueza. Pode ser, antes, indício de sensibilidade e de inteligência (ainda que muitas pessoas sensíveis e inteligentes não sofram com ela, felizmente). Não é motivo de culpa, e sim uma enfermidade que pode e deve ser tratada.


Em alguns casos, a angústia é intensa ao ponto de fazer a morte parecer um alívio. Foi assim para mim, em alguns momentos. Aqui de fora, é fácil perceber como o horizonte fica mais sombrio através das lentes da tristeza crônica. Com o olhar desimpedido, paisagens alternativas, que sempre existiram, ficam mais claras.
* * *
Nota do autor: no contexto de um transtorno mental como a depressão, a tentativa de suicídio não é uma decisão racional ou decorrente de livre arbítrio, ao contrário do que pode parecer; é importante, em caso de risco, buscar ajuda adequada, como a orientação de um psicólogo ou psiquiatra - disponível gratuitamente nos Centros de Atenção Psicossocial da rede pública -, ou ainda de entidades como o Centro de Valorização da Vida, que realizam um importante trabalho de prevenção, inclusive em momentos de crise. Pesquisas sobre o tema ressaltam, entre outros aspectos, os efeitos traumáticos sobre familiares e pessoas próximas nos casos consumados, bem como, por outro lado, os numerosos exemplos de recuperação do bem-estar psíquico e da qualidade de vida por meio de acompanhamento adequado.
* * *
De todo modo, não temos muito tempo. A vida é uma projeção temporária, disse um pensador; como um filme, com começo, meio e fim. Sendo assim, mais vale fazer o melhor possível no tempo contado que temos. Mesmo com todas as limitações, mesmo em meio à depressão.


Num dia de melancolia é possível fazer bem a alguém. Você pode fazer bem a si mesmo, por exemplo, fazendo uma boa refeição, ou se exercitando. Pode ouvir alguém que precise desabafar. Fazer um elogio, encorajar. Então mais vale arriscar e tentar fazer algo de significativo, ainda que seja um passo aparentemente minúsculo. Vai que uma hora saímos desse buraco e voltamos a ganhar bons momentos no tempo que nos resta, quem sabe até fazemos uma diferença positiva na vida de outras pessoas… E o fato é que há grandes chances de isso acontecer.
A depressão pode consumir tempo de vida, mas também pode passar. Eu atravessei diversos episódios depressivos desde a adolescência, e o mais recente durou cerca de oito meses. Passei dias inteiros, do nascer ao pôr do sol, dormindo ou olhando pro teto. Deixei de trabalhar. Fui torturado sem trégua por meus pensamentos. Me senti sozinho e incompreendido no meu inferno pessoal. Tentei aguentar, tentei me ajudar, recebi ajuda. E um dia vi que tinha superado o período de depressão.
Não me iludo, sei que posso escorregar de volta. Depois de horas incontáveis de estudo, reflexão, conversas e psicoterapia, não sei dizer com precisão o que ela é, tenho ideias vagas de suas causas e não tenho a fórmula da cura. Mas conheço o lugar onde ela nos aprisiona. Eu estive aí onde você está, e trouxe comigo algo valioso: a experiência de ter saído. É pouco, reconheço, mas o que tenho de mais importante para te dizer é o que não podia ver aí de dentro: dá para sair.
Para mim, faz sentido pensar na depressão como um feitiço ou um pesadelo. Um filme de terror. Um porre brabo, uma pedra no rim. É terrível, mas uma hora acaba (não digo que acabe por si só; é mais provável que requeira um esforço consciente, prolongado e considerável, na maior parte dos casos).


Além disso, como em todos esses exemplos, sair da depressão tornou muito claro para mim que eu não sou aquilo que sinto quando estou deprimido. Aqueles pensamentos, emoções e comportamentos são manifestações de um corpo e de uma mente em depressão; não são minha essência. A mente abriga e manifesta outras identidades. Alguém pode estar deprimido, mas nunca é deprimido, não importa a duração desse estado. Posso te dar um exemplo simples: basta lembrar de algum período da vida em que você não estava em depressão. Ela chega e ela vai. Espero que você encontre outras pessoas que se libertaram, que pare para ouvi-las, e que decida acreditar nisso. Espero que se lembre disso quando estiver no coração das trevas. Dá para sair.
Tenho outra coisa para te dizer com franqueza. Ninguém vai te salvar, a não ser você mesmo. Esta tampouco é uma verdade absoluta, eu sei, apenas outra lição dolorosa e enriquecedora da minha própria vivência. Com isso, não quero dizer que não precisamos de ajuda e que não é importante contar com a compreensão, a paciência e a generosidade de familiares, amigos e médicos. Eu não teria conseguido sem eles e tenho gratidão eterna por ter podido receber sua ajuda. O que quero dizer é que todo o apoio dessa rede de pessoas, e mesmo os medicamentos, podem te ajudar até certo ponto. A partir desse ponto, você tem de caminhar sozinho.


Esse ponto é aquele em que você decide que vai se ajudar. Não é uma grande e única decisão. São muitas e pequenas escolhas diárias: se abrir com um amigo, pedir ajuda, procurar um psicólogo ou psiquiatra, levantar da cama, dar uma caminhada, passar tempo com quem está disposto a te apoiar, exercitar o corpo, evitar o álcool e outras drogas com efeito depressivo (estou me referindo aqui ao caso da pessoa deprimida), buscar coisas que te façam brilhar os olhos, prosseguir no caminho sem fim de dar significado à vida. Só você pode fazer essas coisas. Mergulhar no escuro da depressão é deparar-se com o fato de que, no fundo, estamos sozinhos. A porção que nos cabe do sofrimento inevitável da vida nós experimentamos sozinhos. Sós, podemos optar por aprender a lidar com ele, e podemos buscar os meios e a ajuda de que precisamos para isso.
Paradoxalmente, a depressão nos mostra ao mesmo tempo que não estamos sozinhos. Ela me forçou a me abrir e expor minha vulnerabilidade a um maior número de pessoas, às vezes nem tão próximas, seja para pedir ajuda, seja porque eu simplesmente não podia esconder a dificuldade por que passava. Isso me fez aprofundar algumas amizades de um modo que não teria sido possível fora desse contexto. Também me fez iniciar amizades, com uma confiança e uma proximidade maiores do que as relações costumam ter no começo. O processo de cura como um todo foi uma lição valiosa de interdependência, mostrando como meu bem-estar depende da qualidade das minhas relações - comigo mesmo, com os outros, com o meio -, da minha inserção em redes de confiança e ajuda mútua, da troca de afeto. São presentes que recebi da depressão.

 Tenho vontade de compartilhar contigo algo mais sobre essa “viagem ao fim da noite” (o romance de Céline não trata expressamente de depressão, mas se relaciona ao que vou dizer, de certa forma). Ao cabo dessa viagem, não encontrei nada. Não há nada, a não ser o sofrimento. Por certo tempo durante essa incursão nas sombras, esperei fazer descobertas sobre o sentido da existência, acreditei que minha rebelião silenciosa contra a vida usual me permitiria finalmente encontrar um eixo de significado. Mas não. Nada. Tive, sim, insights e epifanias, revi hábitos e adquiri maior consciência de alguns fatores de bem-estar e de sofrimento. Mas a resposta a minhas indagações existenciais mais profundas não estavam nessa cela escura.
Entendi que não seria me abandonando que eu me redimiria.

Talvez a depressão, dor crônica da mente, seja como a dor do corpo, um alarme disparado denunciando a enfermidade de nossos modos costumeiros de interpretar e tocar a vida. Mas o remédio e a prevenção não estão na dor. É na vida de todos os dias, em meio a meus afazeres e preocupações corriqueiros, que sinto ter de encontrar, ou definir, os rumos de uma existência significativa.
A depressão me deixou mais sensível à relevância e urgência dessa busca, fez dela minha prioridade zero. Tenho buscado. Há muitas vozes no mar de informações e conselhos despejados diariamente em nossos ouvidos, e entre elas há verdadeiros amigos, profissionais de saúde e professores de vida. E há pessoas como você e eu, buscando curar-se da normalidade patológica. Espero que você as encontre, que se deixe ajudar e que as ajude. Há muito que aprender a fim de superar e prevenir a depressão, e, de modo mais amplo, viver melhor. Por exemplo, adquiri o hábito de me lembrar todo dia dos muitos aspectos favoráveis da minha vida, como ela é hoje.
Terá sido uma lição singela, mas experimentei a dor que estar à deriva na existência pode trazer e ao menos sei que a busca de significado depende de mim. Você não está sozinho nessa viagem. Te desejo força e sorte. Desejo que você possa transformar  esse sofrimento em liberdade.

publicado em 26 de Outubro de 2016, 00:00


 

domingo, 4 de junho de 2017

“Quem quer se matar não quer terminar com a vida; quer acabar com a dor”

Paula Fontenelle | Escritora, jornalista e psicanalista.
 

Autora de um livro sobre o suicídio sob o ponto de vista de quem fica, a jornalista explica que a pessoa apresenta uma série de sinais antes de se matar



Em janeiro de 2005, o pai da jornalista Paula Fontenelle se suicidou. Contando hoje, ela consegue identificar uma série de sinais dados por ele antes de acabar com a própria vida e que, na época, ninguém percebeu. "Meses antes, ele marcou um almoço comigo e me disse que queria abrir uma conta conjunta comigo", diz, ilustrando um dos sinais clássicos de quem decide se matar: O planejamento financeiro dos que ficarão, que são chamados pelos médicos de sobreviventes. Depois que tudo aconteceu, ela decidiu mergulhar no assunto. Da dor, Paula publicou, em 2008, o livro Suicídio, o futuro interrompido - Guia para sobreviventes (Geração Editorial), indicado ao prêmio Jabuti em 2009.


 
Paula é hoje, além de jornalista, psicanalista, escritora e autora do blog Prevenção Suicídio. O nome do blog é a aposta da autora para a redução do número de pessoas que se matam e que hoje cresce como uma bola de neve em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde estima que uma pessoa se suicida a cada 40 segundos. Na prática, os conselhos de Paula para a prevenção do suicídio giram em torno de perguntar e ouvir. "Tem duas perguntas que você deve fazer a uma pessoa que pensa em se suicidar", diz. "Onde dói, e como eu posso ajudar?".

Pergunta. O luto de quem perde alguém por suicídio é diferente daquele que perde alguém por doença ou acidente?
Resposta. Eu acho que tem um ponto que é muito diferente e muito nocivo. Quando alguém morre por qualquer outro tipo de morte, as pessoas se interessam, perguntam. Se, por exemplo, foi um acidente, perguntam como foi, como a pessoa está. Querem saber sobre todo o processo da morte. No caso do suicídio, não. No momento em que você diz que a pessoa se suicidou, quem está ouvindo muda de assunto. Você se sente muito só. O tabu é muito grande. Muita gente esconde. Eu conversei com pessoas que pediram ao legista para alterar o atestado de óbito para, por exemplo, “acidente com arma de fogo”, porque não queria o estigma. Então além de você estar triste e passando por um luto normal, você passa pelo luto da incompreensão das pessoas e do tabu, porque ou a pessoa não quer falar ou pior, ela tem preconceito. Sem falar dos que se sentem culpados naturalmente.



P. Existe um sentimento de revolta com a pessoa que se matou?
R. Sim, a revolta é uma das fases. A primeira é o choque, mas isso é comum em qualquer morte. A segunda, é a raiva. Eu entrevistei uma mulher uma vez que fazia 20 anos que o marido tinha morrido e ela ainda tinha raiva. Tem gente que não sai dessas fases. A raiva é muito comum, porque é como se a gente se perguntasse "como essa pessoa pôde fazer isso comigo?". A gente internaliza a morte do outro. No caso dessa mulher, por exemplo, é compreensível, porque a filha tinha uns sete anos e encontrou o pai morto. E ficou super perturbada. Então essa mulher dizia "eu nunca vou perdoar que ele tenha feito isso com as minhas filhas".

P. E quais são as outras fases?
R. A culpa, que é quase inevitável. Tem um outro sentimento muito forte, e aí eu acho que é exclusivo de quem perde para o suicídio, que é o medo da hereditariedade. A gente começa a pensar "será que eu vou fazer a mesma coisa?". O suicídio não é hereditário. O que pode ser hereditário, obviamente, é o transtorno mental. Mas o transtorno mental tem cura, tem tratamento. A minha irmã, logo depois que meu pai morreu, começou a tomar antidepressivo, mas ela já tinha depressão há muito tempo. E nela, foi acionado o gatilho oposto. Ela disse "eu não vou terminar como ele".

P. O que aconteceu depois que o seu pai se suicidou?
R. Eu queria entender. Como acontece com qualquer um, você fica cheio de perguntas. Por que ele fez isso? O que leva uma pessoa a isso? Como eu não identifiquei? Será que ele disse para mim de alguma maneira e eu não consegui entender? Na época que comecei a pesquisar mais, este assunto não existia no Brasil. Comprei vários livros fora [do país], em inglês, e aí resolvi escrever o livro, porque tantas pessoas passam por isso no Brasil e precisam entender, precisam de informação e não têm. Do mesmo jeito que eu não tive. Por isso eu decidi escrever.


"Tem duas perguntas que você deve fazer a uma pessoa que pensa em se suicidar: Onde dói, e como eu posso ajudar? "

P. Nos seu livro, você fala em sinais que a pessoa dá antes de se suicidar e que podem ser perceptíveis. Quais são esses sinais?
R. Tem vários, e que são bem parecidos com os sintomas de depressão: Recolhimento, mudança de hábito – as pessoas começam a não se cuidar muito -, tristeza, isolamento. Muitas coisas se parecem, até porque a depressão é o transtorno mais associado ao suicídio. Os números mundiais mostram que mais de 90% dos suicídios são associados a algum transtorno mental. Um sinal bem importante é você deixar de sentir prazer em coisas que te davam prazer anteriormente. E existem alguns sinais que são específicos de quem está pensando em suicídio, já avançou na ideia e já está planejando.

P. Quais são?
R. Organização financeira. As pessoas se organizam, principalmente para a família não ter problema. Meu pai fez isso. Alguns meses antes dele se matar, ele marcou um almoço comigo e me disse que queria abrir uma conta conjunta comigo. Ele fez isso porque sabia que eu poderia resolver qualquer coisa.

P. Mas quando ele fez isso, não daria para imaginar que ele planejava se suicidar....
R. Nem passou pela minha cabeça. Naquela época, ele estava com problema financeiro e eu estava ajudando ele. Achei que era por isso. Mas depois, pensando, percebi que aquilo já poderia fazer parte do planejamento. Outro sintoma muito importante é a despedida. As pessoas começam a se despedir, a ligar para amigo de infância, para o primo com quem não fala há muito tempo. Meu pai, um dia antes [de se suicidar], foi até a casa da minha irmã. E naquele dia ela me falou "acho que papai está pensando em se matar". Despedida é muito comum. Outra coisa, é o discurso ficar muito nostálgico. Eles começam a só falar do passado. Qualquer referência que você fizer ao futuro, eles vão só puxar para o passado. Essas pessoas são as que já tomaram a decisão [de se suicidar]. Para elas já não existe futuro, então não faz sentido falar do futuro. E tem um quarto sintoma, que é começar a se desfazer das coisas materiais, inclusive das que têm valor sentimental. É uma forma de testamento em vida.

P. Quando chega a este ponto, da pessoa se organizar para cometer o suicídio, é reversível?


R. Grande parte dos suicídios podem ser prevenidos porque são associados a algum transtorno mental. Toda semana eu recebo pelo menos três mensagens no meu site de gente que está pensando em se matar. Ou de alguém que identificou [os sintomas do suicida], ou de alguém que perdeu alguém. O que eu sempre falo é: Se a situação é emergencial, procure um médico. Porque pode ser um transtorno que já esteja muito avançado. Sem tratar, você não vai conseguir. A primeira coisa é levar ao médico, porque às vezes a pessoa não tem condições de ir sozinha. Terapia e grupo de apoio também podem ajudar. O emergencial é tentar identificar se existe algum transtorno mental associado.

P. Uma outra parte do seu livro fala dos mitos do suicídio. Quais são esses mitos?
R. O principal é aquela história de que “quem fala, não faz”. Ouça. Sempre ouça. Não é natural que um ser humano diga que vai se matar ou que a vida não tem sentido ou que ele não aguenta mais a vida. Isso não é natural. Principalmente com os jovens. Quando é com adolescente, a gente tem mania de falar “ah, a pessoa está fazendo isso para chamar a atenção”. Não ache que a pessoa que fala não vai fazer. Edwin Schneidman, um dos principais especialistas em suicídio, que criou um centro de prevenção aqui nos Estados Unidos, sempre falava que a pessoa que fala em suicídio, que pensa em suicídio, ela não quer se matar, ela quer acabar com a dor. Tem duas perguntas que você deve fazer a uma pessoa que pensa em se suicidar: Onde dói e como eu posso ajudar?. Por isso que é importante você ouvir e tentar ajudá-la naquela dor específica. Essa história de que quem se mata é fraco, ou então é louco, não tem nada a ver uma coisa com a outra.

P. E como sobreviver a um caso de suicídio na família ou de um amigo próximo?
R. O principal é ter com quem conversar. No silêncio, o suicídio cresce. Ele aumenta, fica maior do que é. Isso é o principal. Cada pessoa tem um jeito de lidar, mas para mim, o que funcionou foi ter informação. Ter acesso a informação e tentar entender o que leva uma pessoa a fazer uma coisa dessa. Entender a dor. Para quem passa por isso é muito importante ter com quem falar. É importante ser ouvido sem julgamento, sem opiniões. Apenas ouvir a dor do outro.

P. Quais políticas públicas poderiam ser desenvolvidas para a prevenção do suicídio?
R. Tem alguns exemplos. Um deles foi na Flórida, onde o governador instituiu que todos os professores de jovens tinham que fazer um curso de prevenção e identificação dos sinais do suicídio em jovens para tirar a licença para lecionar. Essa é uma medida simples mas que pode ajudar muito. Outra medida é a distribuição de cartilhas. Em Teresina (PI), o prefeito reuniu profissionais da área da saúde do município e fez uma série de palestras sobre suicídio. É possível. Acho que o principal é passar informação e ajudar a acabar com este estigma e preconceito com o suicídio. Existe muito preconceito inclusive do profissional da área de saúde, médicos, enfermeiros. O pessoal que tá no hospital tentando salvar a vida, chega uma pessoa que acabou de tentar tirar a vida, eles dizem “por que eu vou perder meu tempo com alguém que não está querendo viver?”. Eles são muito maltratados na rede de saúde, porque as pessoas não entendem que aquilo é uma doença.



P. Os jovens são o maior grupo de risco?
R. Quando você pensa em números, e é no mundo inteiro isso, os idosos com mais de 70, 75 anos, são os que mais se suicidam. Mas a faixa etária que mais cresce é entre 19 e 24 anos.

P. E entre homens e mulheres, qual é a estatística?
R. A própria Organização Mundial da Saúde diz que os números são muito pouco confiáveis. Inclusive os dados do Brasil não sei se são confiáveis. Não dá pra confiar. Agora, sobre homens e mulheres, os homens morrem mais do que as mulheres, mas as mulheres tentam muito mais o suicídio que os homens. O que diferencia é que a mulher toma remédio e não morre. É o método que elas utilizam. Os homens utilizam métodos como se enforcar e arma de fogo, e morrem mais. Mas é preciso ter cuidado, porque o homem tenta menos do que a mulher. Se para cada tentativa houvesse um suicídio realizado, a mulher morreria mais.

P. Qual é o papel da imprensa no trato deste tema?
R. É importantíssimo. Eu entendo o por que do silêncio da imprensa. De fato, o contágio existe. Quando este assunto começa a vir muito à tona, uma pessoa vulnerável pode ficar estimulada a dar o próximo passo para o suicídio. Isso é verdade. Mas a mídia tem que ter muito cuidado em como cobrir o assunto. Se for pensar na prevenção e em sempre seguir as orientações pra isso, ela estará cumprindo um grande papel. Por exemplo, sempre ouvir especialistas e pessoas que passaram por isso, sempre falar dos fatores de risco associados e dos sinais. Dar orientações sobre o que fazer. A coisa principal é nunca levar para o lado do romance. Outra coisa é não falar do método usado para o suicídio detalhadamente. A imprensa tem um papel importantíssimo na prevenção, mas tem que ter um cuidado enorme para cobrir este assunto.

P. Você acha que falta se falar mais sobre este tema? Por que é um tabu?


R. Acho que todo mundo se escondendo por trás do silêncio não ajuda na prevenção do suicídio. Todo mundo deveria falar, mas com muito cuidado e responsabilidade, inclusive a mídia. E não falar somente quando uma celebridade se mata, porque é isso que acontece. Isso não é tema de celebridade. Não tem rico e pobre para o suicídio. O que a gente tem que fazer é falar continuamente, voltando para a prevenção e de forma responsável.

P. Sobre o jogo da baleia azul, que é feito de desafios, até que o último é o suicídio, e já teria causado a morte de alguns adolescentes...
R. A gente deveria mesmo estar falando deste jogo? Até que ponto a gente está estimulando os jovens a procurar o jogo? Eu teria muito cuidado para falar dele. Uma coisa é falar de uma série, que está abordando o tema [13 reasons why], falar das vantagens e desvantagens de se falar sobre isso. Agora falar de um jogo que tem como finalidade que os jovens se matem, eu não vejo nenhuma vantagem de falar disso.

P. Mas de alguma maneira este assunto precisa ser abordado, né?
R. Eu acho que pode ser abordado no sentido do alerta. Para alertar os pais para que conversem com seus filhos e, mais uma vez, fiquem atentos ao que eles estão fazendo na Internet.

http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/24/politica/1493060585_262958.html