Carta a alguém em depressão
De alguém que esteve aí onde você está agora, e que quer que você saia, assim como eu saí
Você
está vivendo um episódio de depressão. Eu sei porque já estive aí e
pode ser que volte em alguma hora. Bem, quero aproveitar este momento em
que me encontro aqui do lado de fora para te escrever esta carta com
base no eu que já esteve aí e neste outro que um dia pode voltar.
Não tenho a pretensão de te ajudar. Quero apenas
te fazer companhia por alguns momentos, como um desconhecido que se
senta do teu lado num banco público, reconhece a tua solidão e puxa uma
conversa, tentando respeitar sua aflição e tomando cuidado para não
perturbar a segurança precária do teu isolamento.
Talvez, enquanto eu fale ou escreva, você continue
sentindo uma tristeza, um desânimo e um vazio que te acompanham até
demais, só que tudo isso não te impede de trabalhar, de cuidar da vida e
fingir que está tudo bem quando a ocasião requer. Ou talvez você esteja
paralisado e sozinho, duvidando que possa realmente sair do buraco
algum dia.
Quero ser franco contigo, porque sei que nessa
condição temos pouca paciência para papo furado. A depressão pode mesmo
levar ao suicídio. Em outros casos, ela pode ser uma pena longa e
severa, anos e anos de prisão intelectual, afetiva e funcional. A vida
se derramando no ralo do tempo.
Acho bom encarar isso. É preciso reconhecer a
dimensão desse obstáculo. Primeiro, para nos darmos conta de que essa
condição demanda nossa atenção e cuidados imediatos e continuados.
Depois, para estarmos seguros de que estão errados aqueles que, por não a
terem experimentado, e por estarem mal informados, subestimam ou
estigmatizam a depressão. Com isso, contribuem para criar dificuldades
ao enfrentamento adequado de um problema de saúde pública mundial.
Também contribuem para agravar o sofrimento de pessoas próximas. Eu
tinha minhas dúvidas quando estava aí onde você está, mas hoje é
bastante claro para mim: depressão não é sinal de fraqueza.
Pode ser, antes, indício de sensibilidade e de inteligência (ainda que
muitas pessoas sensíveis e inteligentes não sofram com ela, felizmente).
Não é motivo de culpa, e sim uma enfermidade que pode e deve ser
tratada.
Em alguns casos, a angústia é intensa ao ponto de
fazer a morte parecer um alívio. Foi assim para mim, em alguns momentos.
Aqui de fora, é fácil perceber como o horizonte fica mais sombrio
através das lentes da tristeza crônica. Com o olhar desimpedido,
paisagens alternativas, que sempre existiram, ficam mais claras.
* * *
Nota do autor: no contexto de
um transtorno mental como a depressão, a tentativa de suicídio não é
uma decisão racional ou decorrente de livre arbítrio, ao contrário do
que pode parecer; é importante, em caso de risco, buscar ajuda adequada,
como a orientação de um psicólogo ou psiquiatra - disponível
gratuitamente nos Centros de Atenção Psicossocial da rede pública -, ou ainda de entidades como o Centro de Valorização da Vida,
que realizam um importante trabalho de prevenção, inclusive em momentos
de crise. Pesquisas sobre o tema ressaltam, entre outros aspectos, os
efeitos traumáticos sobre familiares e pessoas próximas nos casos
consumados, bem como, por outro lado, os numerosos exemplos de
recuperação do bem-estar psíquico e da qualidade de vida por meio de
acompanhamento adequado.
* * *
De todo modo, não temos muito tempo. A vida é uma
projeção temporária, disse um pensador; como um filme, com começo, meio e
fim. Sendo assim, mais vale fazer o melhor possível no tempo contado
que temos. Mesmo com todas as limitações, mesmo em meio à depressão.
Num dia de melancolia é possível fazer bem a alguém.
Você pode fazer bem a si mesmo, por exemplo, fazendo uma boa refeição,
ou se exercitando. Pode ouvir alguém que precise desabafar. Fazer um
elogio, encorajar. Então mais vale arriscar e tentar fazer algo de
significativo, ainda que seja um passo aparentemente minúsculo. Vai que
uma hora saímos desse buraco e voltamos a ganhar bons momentos no tempo
que nos resta, quem sabe até fazemos uma diferença positiva na vida de
outras pessoas… E o fato é que há grandes chances de isso acontecer.
A depressão pode consumir tempo de vida, mas
também pode passar. Eu atravessei diversos episódios depressivos desde a
adolescência, e o mais recente durou cerca de oito meses. Passei dias
inteiros, do nascer ao pôr do sol, dormindo ou olhando pro teto. Deixei
de trabalhar. Fui torturado sem trégua por meus pensamentos. Me senti
sozinho e incompreendido no meu inferno pessoal. Tentei aguentar, tentei
me ajudar, recebi ajuda. E um dia vi que tinha superado o período de
depressão.
Não me iludo, sei que posso escorregar de
volta. Depois de horas incontáveis de estudo, reflexão, conversas e
psicoterapia, não sei dizer com precisão o que ela é, tenho ideias vagas
de suas causas e não tenho a fórmula da cura. Mas conheço o lugar onde
ela nos aprisiona. Eu estive aí onde você está, e trouxe comigo algo
valioso: a experiência de ter saído. É pouco, reconheço, mas o que tenho de mais importante para te dizer é o que não podia ver aí de dentro: dá para sair.
Para mim, faz sentido pensar na depressão como um
feitiço ou um pesadelo. Um filme de terror. Um porre brabo, uma pedra no
rim. É terrível, mas uma hora acaba (não digo que acabe por si só; é
mais provável que requeira um esforço consciente, prolongado e
considerável, na maior parte dos casos).
Além disso, como em todos esses exemplos, sair da depressão tornou muito claro para mim que eu não sou aquilo que sinto quando estou deprimido.
Aqueles pensamentos, emoções e comportamentos são manifestações de um
corpo e de uma mente em depressão; não são minha essência. A mente
abriga e manifesta outras identidades. Alguém pode estar deprimido, mas nunca é deprimido,
não importa a duração desse estado. Posso te dar um exemplo simples:
basta lembrar de algum período da vida em que você não estava em
depressão. Ela chega e ela vai. Espero que você encontre outras pessoas
que se libertaram, que pare para ouvi-las, e que decida acreditar nisso.
Espero que se lembre disso quando estiver no coração das trevas. Dá
para sair.
Tenho outra coisa para te dizer com franqueza.
Ninguém vai te salvar, a não ser você mesmo. Esta tampouco é uma verdade
absoluta, eu sei, apenas outra lição dolorosa e enriquecedora da minha
própria vivência. Com isso, não quero dizer que não precisamos de ajuda e
que não é importante contar com a compreensão, a paciência e a generosidade de familiares, amigos e médicos.
Eu não teria conseguido sem eles e tenho gratidão eterna por ter podido
receber sua ajuda. O que quero dizer é que todo o apoio dessa rede de
pessoas, e mesmo os medicamentos, podem te ajudar até certo ponto. A
partir desse ponto, você tem de caminhar sozinho.
Esse ponto é aquele em que você decide que vai se
ajudar. Não é uma grande e única decisão. São muitas e pequenas escolhas
diárias: se abrir com um amigo, pedir ajuda, procurar um psicólogo ou
psiquiatra, levantar da cama, dar uma caminhada, passar tempo com quem
está disposto a te apoiar, exercitar o corpo, evitar o álcool e outras
drogas com efeito depressivo (estou me referindo aqui ao caso da pessoa
deprimida), buscar coisas que te façam brilhar os olhos, prosseguir no
caminho sem fim de dar significado à vida. Só você pode fazer essas
coisas. Mergulhar no escuro da depressão é deparar-se com o fato de que,
no fundo, estamos sozinhos. A porção que nos cabe do sofrimento
inevitável da vida nós experimentamos sozinhos. Sós, podemos optar por
aprender a lidar com ele, e podemos buscar os meios e a ajuda de que
precisamos para isso.
Paradoxalmente, a depressão nos mostra ao mesmo
tempo que não estamos sozinhos. Ela me forçou a me abrir e expor minha
vulnerabilidade a um maior número de pessoas, às vezes nem tão próximas,
seja para pedir ajuda, seja porque eu simplesmente não podia esconder a
dificuldade por que passava. Isso me fez aprofundar algumas amizades de
um modo que não teria sido possível fora desse contexto. Também me fez
iniciar amizades, com uma confiança e uma proximidade maiores do que as
relações costumam ter no começo. O processo de cura como um todo foi uma
lição valiosa de interdependência, mostrando como meu bem-estar depende da qualidade das minhas relações - comigo mesmo, com os outros, com o meio -, da minha inserção em redes de confiança e ajuda mútua, da troca de afeto. São presentes que recebi da depressão.
Tenho vontade de compartilhar contigo algo mais sobre essa “viagem ao fim da noite” (o romance de Céline
não trata expressamente de depressão, mas se relaciona ao que vou
dizer, de certa forma). Ao cabo dessa viagem, não encontrei nada. Não há
nada, a não ser o sofrimento. Por certo tempo durante essa incursão nas
sombras, esperei fazer descobertas sobre o sentido da existência,
acreditei que minha rebelião silenciosa contra a vida usual me
permitiria finalmente encontrar um eixo de significado. Mas não. Nada.
Tive, sim, insights e epifanias, revi hábitos e adquiri maior
consciência de alguns fatores de bem-estar e de sofrimento. Mas a
resposta a minhas indagações existenciais mais profundas não estavam
nessa cela escura.
Entendi que não seria me abandonando que eu me redimiria.
Talvez a depressão, dor crônica da mente, seja
como a dor do corpo, um alarme disparado denunciando a enfermidade de
nossos modos costumeiros de interpretar e tocar a vida. Mas o remédio e a
prevenção não estão na dor. É na vida de todos os dias, em meio a meus
afazeres e preocupações corriqueiros, que sinto ter de encontrar, ou
definir, os rumos de uma existência significativa.
A depressão me deixou mais sensível à relevância e
urgência dessa busca, fez dela minha prioridade zero. Tenho buscado. Há
muitas vozes no mar de informações e conselhos despejados diariamente
em nossos ouvidos, e entre elas há verdadeiros amigos, profissionais de
saúde e professores de vida. E há pessoas como você e eu, buscando
curar-se da normalidade patológica. Espero que você as encontre, que se
deixe ajudar e que as ajude. Há muito que aprender a fim de superar e
prevenir a depressão, e, de modo mais amplo, viver melhor. Por exemplo,
adquiri o hábito de me lembrar todo dia dos muitos aspectos favoráveis
da minha vida, como ela é hoje.
Terá sido uma lição singela, mas experimentei a
dor que estar à deriva na existência pode trazer e ao menos sei que a
busca de significado depende de mim. Você não está sozinho nessa viagem.
Te desejo força e sorte. Desejo que você possa transformar esse
sofrimento em liberdade.
publicado em 26 de Outubro de 2016, 00:00
Nenhum comentário:
Postar um comentário