"Oi, é a Hannah. Hannah Baker."
Assim começam as últimas palavras da protagonista de 13 Reasons Why, produção original da Netflix que estreou na última sexta-feira (31).
Nó na garganta para uns, ameaça para outros, a desconfortável
despedida de Hannah é um convite urgente da série para pensarmos os
efeitos das palavras na vivência adolescente em um contexto de emoções
subestimadas.
A gravação, deixada em analógicas fitas K7, lista os 13 motivos pelos
quais Hannah, de 17 anos, decidiu terminar seu sofrimento com um suicídio. Cada motivo corresponde a um episódio.
Apesar de este texto conter alguns spoilers, o
suicídio não é um deles. É a premissa da narrativa, baseada no livro
homônimo de Jay Asher, de 2007, e que no Brasil foi lançado com o título
Os 13 Porquês (Ática, 2009).
Enquanto o colega Clay Jensen, de 17 anos, ouve as fitas,
acompanhamos a trajetória de Hannah, do próprio Clay e de alguns alunos
na Liberty High School e nos espaços que orbitam a escola de ensino
médio, como a lanchonete frequentada por eles (Monet's), as festas e as
casas de cada um.
Dois lares são especialmente abordados: o dos pais de Hannah,
enlutados e marcados pela ausência brutal da única filha, e da família
de Clay, cujos pais tentam traçar alguma comunicação com o filho que
nada revela.
Com sua trama e linguagem adolescentes, 13 Reasons Why à
primeira vista pode parecer uma novelinha de angústias particulares, mas
desenvolve profundidade e temáticas obrigatórias não só para pais de
crianças e adolescentes, como também para a sociedade como um todo.
Nos EUA, a assustadora recorrência de tiroteios em escolas nos leva a
pensar em um problema localizado, mas o bullying e o cyberbullying
presentes nos colégios brasileiros estão relacionados a desfechos igualmente trágicos, como automutilações, agressões e assassinatos.
Mais do que alarmante, a narrativa é uma tentativa de entendimento do
suicídio para fins preventivos e também reflexivos. Sinais que passam
despercebidos, metáforas de desespero não assimiladas e sofrimento
silenciado costumam vir à tona tardiamente como pedido de ajuda, gerando
ainda mais angústia diante do irreversível.
Longe da ficção, Sue Klebold, mãe de Dylan Klebold, um dos adolescentes responsáveis pela tragédia na escola americana Columbine, em 1999, se recrimina por não ter percebido as intenções do filho que, antes de se suicidar, atirou e matou colegas da escola:
Seus amigos mais próximos, garotos com quem ele conviveu todos os dias durante anos, não sabiam quanto ele estava desesperado. Alguns se recusam a acreditar nessa caracterização até hoje. Mas eu era a mãe dele. Eu deveria saber.Sue Klebold, no livro 'O Acerto de Contas de uma Mãe – A Vida Após a Tragédia de Columbine'
O suicídio pressupõe uma dolorosa especulação: por que uma pessoa
amada resolve desistir da própria vida? Em um dos momentos mais
comoventes da série, a mãe de Hannah, Olivia, lamenta a ausência de um
bilhete que dê algum tipo de justificativa para a decisão da filha.
Nem Olivia nem o marido, Andy, conseguem conciliar a memória que
tinham da garota com o presente devastador que agora precisam enfrentar.
Para tentar suprir essas lacunas, entram na Justiça pedindo a
responsabilização da escola.
13 Reasons Why não deixa de ser um preenchimento ficcional
em cima de uma angústia, uma fantasia de explicação que permite dar
sentido ao que aconteceu -- pois na vida real não temos tais respostas,
mesmo quando bilhetes ou posts nas redes sociais são deixados.
Transbordamento sem aviso prévio
Nas 13 motivações de Hannah, narradas como acontecimentos que vão
aumentando a falta de perspectiva no futuro, o suicídio não é apontado
como desfecho dramático de um acontecimento único, como o cyberbullying
de uma foto mal-intencionada, uma humilhação na frente de toda a classe
ou o fim de um relacionamento. "O suicídio é o desfecho de uma série de
fatores que se acumulam na história do indivíduo", esclarece a
Associação Brasileira de Psiquiatria.
A ideia suicida vem do acúmulo de situações, como um copo que vai se
enchendo e que transborda com uma gota d'água (a perda de um emprego,
por exemplo), levando à sensação de total impotência e desespero, explicaram ao HuffPost Brasil os voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), que há 55 anos atua na prevenção do suicídio no Brasil.
"Dificuldades financeiras, assim como guerras, ditaduras e outros cenários críticos podem ser fatores de pressão externa e 'adicionar água ao copo' de muitas pessoas, mas não podem ser apontados como motivos exclusivos de suicídio. Cada pessoa tem um limite próprio e reage de maneira diferente aos mesmos estímulos, então é essencial sempre encontrar maneiras de 'esvaziar o copo' antes que chegue na borda."
Esvaziar o copo, porém, passa pelo reconhecimento de que este esteja
cheio, e na vivência adolescente, em que as emoções particulares de cada
um ficam obscurecidas, camufladas ou disfarçadas, o transbordamento
chega sem aviso prévio.
Comportamentos que poderiam ser interpretados como sinais, como o
silêncio ou a agressividade, são reduzidos à faixa etária: "isso é fase,
vai passar". Como se a adolescência em si justificasse os sintomas
apresentados...
A transição de uma criança para o universo adulto jamais deveria ser
tratada como banal, e esta parece ser a maior contribuição de 13 Reasons Why.
No mundo adulto da independência e das responsabilidades cabem a
raiva, a tristeza, o medo e a dissimulação. Por que haveria de ser
diferente no "não-lugar" que é a adolescência, esse período da vida em
que um pé está no infantil, e o outro ensaia passos adultos?
A intensidade dos sentimentos tem resposta proporcional à maneira
como as pessoas reagem ao que é dito para elas. Uma ofensa em um
vulnerável período de constituição da identidade faz reverberar
inseguranças e frustrações, e só mesmo a ressignificação daquilo que
machuca poderia dar ou devolver o sentimento de integridade.
Hannah tenta colocar em palavras, para destinatários específicos, as
suas motivações. Curiosamente, ao terminar a fita 12, Hannah sente certo
sentido em viver. Mas o que ocorre é a mortal impossibilidade de
conseguir conversar com os pais, com Clay ou com o conselheiro da
escola.
Ela não encontrou escuta para seu sofrimento nem insistiu em tentar
comunicá-lo, muito possivelmente por não saber colocá-lo em palavras.
Crianças invariavelmente recorrem aos jogos e brincadeiras para expressar o que se passa em seus mundos internos.
Nem a mais aparente eloquência de um adolescente, porém, pode garantir
que ele consiga dar vazão às suas emoções. Ao mesmo tempo, a escola dela
falhou em fazer a escuta sensível daquilo que não se consegue
pronunciar.
A Comunicação Indispensável
As redes sociais se apresentam como poderosos meios de comunicação,
mas como vemos no cyberbulling de Hannah, também configuram novas formas
de sofrimento e ressaltam, para mais pessoas, desamparos e desesperos
alheios.
O público suplanta o íntimo, e prevalecem as aparências em detrimento
de um interior necessitado, mas sem a gramática necessária para pedir
ajuda.
Clay demonstra, em vida, essa falta de comunicação dos próprios
sentimentos, reservando às lágrimas no chuveiro e à raiva as únicas
possibilidades de extravasar seu (temporariamente) arruinado mundo
particular.
Falar de suicídio é falar de prevenção; é dar nome ao que atormenta e
ao que se apresenta como impossível. A cada dia, pelo menos 32
brasileiros se matam, segundo dados do Ministério da Saúde e da OMS.
A prevenção poderia salvar a vida de nove entre dez pessoas que hoje
se suicidam. A produção da Netflix parece encampar essa mensagem com
personagens que podem ser reconhecidos em escolas de todo o mundo.
O estímulo à prevenção surtiu efeitos, pelo menos no Brasil. Segundo o CVV, desde a estreia do série, os pedidos de ajuda ou de conversa enviados por e-mail aumentaram em mais de 100%, com 25 mensagens mencionando 13 Reasons Why.
Ainda que apresentada como série adolescente de mistério, com personagens carismáticos e algumas tiradas de humor, 13 Reasons Why
não foge do incômodo e da perplexidade provocados por um suicídio. O
tempo todo se especula em torno da narrativa de Hannah, até que o
suicídio em si abruptamente nos coloca na posição de encarar o fato, a
decisão, a dor e a finitude que vem com ele.
O que a ficção da série consegue é um debruçar nosso sobre o
insuportável da realidade, sobre aquilo que não se diz, nem tampouco se
escreve. Sobre a angústia da ausência de respostas, e sobre a inibição
de perguntas que podem apontar novos caminhos diante do sofrimento
insuportável, porém, reversível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário