Começa a tramitar nesta terça-feira (30) no Senado um projeto de lei
que institui a Semana Nacional de Valorização da Vida, um evento anual
para prevenção ao suicídio. Durante a semana, governos e sociedade
deverão promover atividades em todo o país para debater estratégias de
conscientização e esclarecer a população sobre questões como o que pode
levar alguém a tirar a própria vida, quais os possíveis sinais de alerta
e onde procurar ajuda. O evento deverá ser realizado na semana do dia
10 de setembro, Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio.
O projeto, do senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), é uma resposta
a uma preocupação antiga de entidades médicas. O suicídio é um grave
problema de saúde pública. Faz mais vítimas do que a guerra e os
homicídios, somados. É a segunda causa de morte de jovens no mundo. Mata
mais do que o HIV. E apesar dessa gravidade, ainda é um tabu, cercado
de preconceitos e do qual pouco se fala.
Doze mil pessoas se matam a cada ano no Brasil, e os números estão
crescendo. A maioria dessas mortes poderia ser evitada, sustentam
profissionais da área. Mas o tabu prejudica a prevenção, impedindo que
mais gente em sofrimento procure ajuda. Por isso, é preciso falar sobre
suicídio, rompendo o silêncio para informar a população.
— Temos 800 mil casos de suicídio por ano no mundo. Esse problema
precisa ser debatido abertamente, não pode ser ignorado — diz Garibaldi,
que acredita que a campanha ajudará a reduzir essas mortes no país.
Preocupação mundial
A
Organização Mundial da Saúde (OMS) já reconhece o suicídio como
prioridade e ressalta que as mortes, em 90% dos casos, podem ser
prevenidas, se quem está em risco receber assistência.
A organização conclamou os países-membros a diminuir a incidência em
10% até 2020. O Brasil é um desses países. Aqui, porém, os números estão
aumentando (veja quadro).
Entidades médicas criticam a falta de campanhas governamentais de
prevenção e a insuficiência da rede pública de atenção psicossocial, que
inclui, entre outras estruturas, os centros de atenção psicossocial (os
Caps, que hoje são quase 2,5 mil no país). Também condenam a lentidão
do governo em tirar do papel as diretrizes nacionais de prevenção ao
suicídio, de 2006.
Agora, 11 anos depois, o governo deve lançar em setembro o Plano
Nacional de Prevenção ao Suicídio. O anúncio foi feito pelo coordenador
de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro Junior, durante
a audiência pública promovida na quinta-feira pela Comissão de Assuntos
Sociais (CAS) para instruir o projeto de Garibaldi. O plano terá três
eixos principais: fortalecimento do cuidado com pessoas com transtornos
mentais, já que a presença desse tipo de transtorno é o principal fator
de risco; ações de prevenção; e foco em informação e mídia.
Cordeiro anunciou também uma parceria com o Centro de Valorização da
Vida (CVV) para disponibilização de um telefone gratuito de atendimento.
O serviço do CVV não é cobrado, mas as ligações para o 141 pagam pulso
telefônico. O número gratuito (188) já está funcionando no Rio Grande do
Sul. A gratuidade, inclusive para quem liga de celular, resultou em um
aumento de ligações para o serviço.
Doenças mentais
Garibaldi relata que decidiu apresentar o projeto após ser procurado
por integrantes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que
expuseram a ele a importância de combater o estigma em torno do suicídio
e também da doença mental. Por isso, outro foco da Semana de
Valorização da Vida será mobilizar a sociedade contra o preconceito em
relação a essas doenças, que estão diretamente relacionadas ao risco de
morte autoinfligida.
Coordenadora da Comissão de Estudo e Prevenção ao Suicídio da ABP, a
psiquiatra Alexandrina Meleiro explica que, segundo a literatura médica
mundial, a grande maioria das pessoas que se suicidaram tinha, ao menos
no momento do ato, uma patologia mental, como depressão, e não foi
devidamente tratada. Esses casos eram passíveis de prevenção, diz. Para a
psiquiatra, é preciso deixar de ter medo de falar sobre o assunto:
— Se conseguirmos vencer o preconceito contra a doença mental, vamos
poder identificar e tratar mais pessoas que precisam de ajuda.
A presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília, Maria Dilma
Teodoro, ressalta que o desconhecimento da sociedade sobre a depressão e
outros transtornos mentais impõe uma dor extra a quem sofre do mal:
— Na depressão, que é uma das patologias com maior prevalência de
suicídio, as pessoas acham que você não é forte, que tem que reagir. Não
entendem que você não consegue reagir porque tem uma doença que traz
alterações cerebrais que fazem com que surjam aqueles sintomas.
Isso faz com que o indivíduo, quanto mais é criticado, mais se
recolha e se sinta incapaz, às vezes buscando o suicídio para aliviar o
sofrimento, diz ela:
— Por causa desse preconceito, dessa dificuldade de buscar ajuda, estamos perdendo pessoas, e famílias estão sofrendo.
Baleia Azul
Desde abril, um repentino interesse pelo tema tomou conta das
conversas na mídia, nas escolas, nas famílias. Um falso jogo virtual, o
Baleia Azul — acusado de incentivar a automutilação e o suicídio entre
jovens —, e uma série sobre uma garota que se mata, Os 13 Porquês (13 Reasons Why,
no original), alarmaram a opinião pública, trazendo à tona um problema
que costumava ficar encoberto. No Brasil, o suicídio vem crescendo mais
entre os jovens do que em outras faixas etárias. Na população em geral, o
número aumentou 10% desde 2002. Entre jovens, cresceu 33%.
Para entidades como a ABP e o Conselho Federal de Medicina (CFM), que
em abril lançaram uma nota pública para esclarecer a população sobre o
Baleia Azul, esses acontecimentos foram uma oportunidade para orientar
sobre o problema. Na nota, as entidades alertam para o equívoco de
simplificar o comportamento suicida, associando-o a uma única causa, e
esclarecem sobre a relação com transtornos mentais, lembrando que
crianças e adolescentes em sofrimento estão mais vulneráveis a conteúdos
desse tipo. A nota também orienta pais, escolas e profissionais de
saúde a estarem atentos para identificar condutas de risco.
Mas se serviu para despertar o interesse pelo assunto, por outro lado
a reação aos dois eventos mostrou o despreparo de parte da mídia ao
lidar com o tema e a incapacidade da população de discernir entre boatos
e informações verdadeiras na internet, avaliam especialistas.
Durante a audiência na CAS, o psicólogo e diretor de Educação da
SaferNet Brasil, Rodrigo Najm, afirmou que o desafio Baleia Azul surgiu
de uma fake news (notícia falsa) divulgada na Rússia, em 2016, e
que se alastrou por causa da cobertura sensacionalista da imprensa. A
notícia teria chegado ao Brasil ironicamente no dia 1º de abril,
veiculada por uma emissora de TV, e passou a ser disseminada na mídia e
na rede, sem que houvesse preocupação em checar as informações.
Investigações feitas pela SaferNet (associação de defesa da cidadania
e dos direitos humanos na internet) e outras entidades concluíram que
não há um grupo estruturado por trás do desafio, e sim pessoas em vá-
rios países que se aproveitaram das falsas notícias para atrair
seguidores ao suposto jogo. Com isso, o que era boato tornou-se um risco
real, diz Najm.
O psicólogo ressaltou que é importante não demonizar a internet, e
sim usar o poder da rede para multiplicar informações corretas e falar
de prevenção.
Jovens em risco
Gabriela tinha 13 anos quando tentou se matar pela primeira vez. Ficava triste por não entender o que estava sentindo. Com o tempo, passou a achar que não havia saída. Ela ainda não sabia que sofria de depressão.
— Na época, não tive coragem de falar com meus pais. Não conseguia expressar verbalmente o que estava sentindo. Tive medo.
Em situações de angústia, ela fazia cortes nos braços e nas pernas,
como forma de aliviar a dor. Depois de duas tentativas de suicídio,
resolveu pedir ajuda e viu que não estava sozinha.
— Cheguei a um ponto em que me deixei ser ajudada. E isso foi crucial
para conseguir melhorar — diz, lembrando que “ninguém tem culpa de ter
uma doença psicológica, não é algo que a pessoa escolhe ter”.
O relato de Gabriela, hoje com 21 anos, integra a reportagem
“Prevenção ao Suicídio — É preciso falar. É possível salvar vidas”, da
Rádio Senado, que em abril ganhou o Prêmio de Comunicação da CNBB.
O depoimento expressa a complexidade de perceber condutas de risco em
jovens. A psiquiatra Alexandrina Meleiro diz que os pais precisam estar
atentos para identificar sinais de depressão ou ideação suicida em uma
fase em que as alterações de humor e de comportamento podem ser vistas
como “coisa de adolescente”.
Além da depressão, o abuso de drogas (especialmente o álcool), o bullying, o abuso sexual e a agressão física estão entre os fatores que podem levar a condutas de risco.
Mudança brusca de comportamento, isolamento social, abandono de
atividades prazerosas e tristeza persistente são alguns dos sinais de
alerta. Os pais também devem perceber alterações do sono e apetite,
queda no rendimento escolar, lesões sem razão aparente (sugerindo
automutilação) e mensagens de desesperança, despedida ou com conteúdo de
morte nas mídias sociais. Se algo for observado, é preciso conversar e
procurar tratamento, diz ela:
— Os adolescentes sofrem calados muitas vezes, porque têm vergonha de
dizer o que estão sentindo. Os pais devem abordar o assunto com
carinho, atenção e sobretudo compreensão. Não questione seu filho já com
crítica, julgamento, represália. É a compreensão, o estar junto, que
fará com que ele possa se abrir e ser cuidado.
Ela cita também a importância de fatores protetivos, como família, amigos ou crença religiosa.
Apoio emocional
Em abril, quando o tema suicídio ganhou a mídia, o posto de
atendimento do CVV de Brasília teve um aumento de 150% nos atendimentos.
Para o voluntário Marcio Peixoto, isso mostra que, quando o assunto é
divulgado de forma correta na mídia, com foco nas formas de prevenção,
mais pessoas procuram o serviço.
— As pessoas querem falar, dividir sua angústia, e muitas vezes têm
vergonha de se abrir com um familiar ou um amigo. O que fazemos é ouvir
de forma empática, verdadeira, e com sigilo. Não temos registro de quem
liga. Estamos aqui para dar atenção a quem nos procura, não para julgar.
Criado em 1962 no Brasil, o CVV é um serviço de utilidade pública que
oferece apoio emocional e prevenção ao suicídio. O centro registra 1
milhão de atendimentos por ano no país e tem 2 mil voluntários
treinados.
Em Brasília, 60 voluntários atuam para manter o atendimento 24 horas
por dia, todos os dias. Atendem pelo telefone 141 e por chat, e-mail e
Skype.
Peixoto diz que, muitas vezes, a tentativa de suicídio é um pedido de
ajuda. A pessoa quer se livrar do sofrimento, e não necessariamente
tirar a própria vida.
— É importante ouvir as pessoas. Isso é algo que quase não se
consegue fazer hoje em dia. É importante que a gente olhe em volta,
observe quem está no nosso entorno: pode ser alguém em sofrimento. É
preciso estar atento para poder ajudar.
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