Compartilho esse trecho porque mexeu muito comigo, assim como todos os materiais que tenho postado aqui. Mas queria sua opinião: ele mexe com você? Você compreende o sentimento de Alice quando escreveu a carta? Porque para mim, ficou uma mistura de tristeza e alívio quando ela consegue ler a carta, mas não consegue executar o que tinha planejado... Talvez eu tenha me identificado com a atitude da personagem - se eu estivesse nessa situação, será que ...
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“Alice sentou-se diante do computador, esperando a tela acender. [...]
Mas a verdade é que estava muito longe de se sentir bem. Ainda conseguia ler e compreender textos curtos, mas o teclado do computador se tornara uma mixórdia indecifrável de letras. Na verdade, ela havia perdido a capacidade de compor palavras com as letras do alfabeto no teclado. Sua capacidade de usar a linguagem, aquela coisa que mais distinguia os seres humanos dos animais, a estava abandonando, e Alice sentia-se cada vez menos humana à medida que ela partia. Fazia algum tempo que dera um adeus choroso ao sentir-se bem.
Clicou na caixa de entrada. Setenta e três mensagens novas. Acabrunhada e impotente para responder, fechou o programa de email sem ler mensagem alguma. Contemplou a tela diante da qual passara uma parte tão grande de sua vida profissional. Havia três pastas na área de trabalho, dispostas numa coluna vertical: Disco Rígido, Alice, Borboleta. Clicou na pasta Alice.
Dentro havia outras pastas com títulos diferentes: Resumos, Assuntos Administrativos, Aulas, Conferências, Dados Numéricos, Propostas de Financiamento de Bolsas, Casa, John, Crianças, Seminários de Almoço, Das Moléculas à Mente, Artigos, Apresentações, Alunos. Toda a sua vida organizada em pequenos ícones arrumados. Não suportou ver o que havia dentro deles, por medo de não se lembrar de sua vida inteira, ou não compreendê-la. Clicou na pasta Borboleta.
Querida Alice,
Você escreveu esta carta para si mesma quando estava em seu juízo perfeito. Se estiver lendo isto e não conseguir responder a uma ou mais das seguintes perguntas, é porque já não está em seu juízo perfeito.
Em que mês estamos?
Onde você mora?
Onde fica o seu escritório?
Qual é a data de nascimento da Anna?
Quantos filhos você tem?
Você sofre da doença de Alzheimer. Perdeu muito de si mesma, muito daquilo que ama, e não está levando a vida que gostaria de levar. Não existe um desfecho satisfatório para essa doença, mas você escolheu um desfecho que é o mais digno, justo e respeitoso para com você mesma e sua família. Já não pode confiar no seu próprio julgamento, mas pode confiar no meu, o seu eu anterior, de antes que a doença de Alzheimer lhe tirasse coisas demais.
Você viveu uma vida extraordinária e gratificante. Você e seu marido, John, têm três filhos saudáveis e maravilhosos, todos muito amados e bem-encaminhados na vida, e você teve uma carreira notável em Harvard, cheia de desafios, criatividade, paixão e realização.
Esta última parte da sua vida, a parte com o mal de Alzheimer, e esse fim que você escolheu criteriosamente são trágicos, mas sua vida não foi trágica. Eu a amo e me orgulho de você, do modo como viveu e de tudo o que fez enquanto lhe foi possível.
Agora, vá para o seu quarto. Vá até a mesa preta ao lado da cama, aquela que tem o abajur azul em cima. Abra a gaveta dessa mesa. No fundo da gaveta há um vidro de comprimidos. O vidro tem um rótulo branco que diz PARA ALICE em letras pretas. Há uma porção de comprimidos nesse vidro. Tome todos eles com um copo grande de água. Certifique-se de engolir todos. Depois, deite-se na cama e vá dormir.
Vá agora, antes que você esqueça. E não diga a ninguém o que está fazendo. Por favor, confie em mim.
Com amor,
Alice Howland
Releu o texto. Não se lembrava de tê-lo escrito. Não sabia a resposta de nenhuma das perguntas, exceto a que indagava quantos filhos tinha. Mas, afinal, provavelmente sabia disso porque já dera a resposta na carta. Não tinha certeza dos nomes deles. Anna e Charlie, talvez. Não conseguiu se lembrar do outro.
Tornou a ler, dessa vez mais devagar, se é que isso era possível. Ler na tela do computador era difícil, mais difícil do que ler no papel, onde ela podia usar caneta e marcador fluorescente. E no papel, poderia levar a carta consigo para o quarto e lê-la quando estivesse lá. Quis imprimir o texto, mas não conseguiu descobrir como fazer isso. Desejou que seu eu anterior, o eu de antes que a doença de Alzheimer tirasse muito dela, tivesse pensado em incluir instruções sobre como imprimir a carta.
Leu mais uma vez. Era fascinante e surreal, como ler um diário que lhe houvesse pertencido na adolescência: palavras secretas e sinceras, escritas por uma garota de quem ela só tinha uma vaga lembrança. Desejou que ela houvesse escrito mais. Suas palavras a deixavam triste e orgulhosa, com um sentimento de força e alívio. Respirou fundo, soltou o ar e subiu.
Chegou ao alto da escada e se esqueceu do que fora fazer lá. Era algo como uma sensação de importância e urgência, porém nada mais. Desceu de novo e procurou indícios de onde acabara de estar. Encontrou o computador com uma carta dirigida a ela, exibida na tela. Leu-a e tornou a subir.
Abriu a gaveta da mesa ao lado da cama. Tirou pacotes de lenços de papel, canetas, uma pilha de papel pegajoso, um vidro de loção, umas duas pastilhas para tosse, fio dental e umas moedas. Espalhou tudo na cama e pegou todos os itens, um por um. Lenços de papel, caneta, caneta, caneta, papel pegajoso, moedas, pastilha, pastilha, fio dental, loção.
- Alice?
- Que é?
Virou-se. John estava parado à porta.
- O que está fazendo aqui? – ele perguntou.
Alice olhou para os objetos em cima da cama.
- Procurando uma coisa.
- Tenho que voltar correndo ao escritório para buscar um artigo que esqueci. Vou de carro, de modo que só vou demorar alguns minutos.
- Está bem.
- Olhe, está na hora, tome isto antes que eu me esqueça.
Entregou-lhe um copo d’água e um punhado de comprimidos. Ela engoliu todos.
- Obrigada – disse.
- Por nada. Eu volto já.
John tirou dela o copo vazio e saiu do quarto. Alice deitou-se na cama, ao lado do conteúdo da gaveta, e fechou os olhos, sentindo-se triste e orgulhosa, forte e aliviada enquanto esperava.”
GENOVA, Lisa. Para Sempre Alice: quando não há mais certezas possíveis, só o amor sabe o que é verdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. (p. 257-260)
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