"É principalmente a partir de Agostinho de Hipona (séc. V), também chamado por alguns de Santo Agostinho, que a morte de si passa a ter uma conotação pecaminosa. Posteriormente, ainda na Idade Média, passa a ser compreendida como crime, porque lesava os interesses da Coroa: aqueles que se matavam tinham seus bens confiscados pela Coroa, em detrimento de suas famílias, e os cadáveres eram penalizados. Ao final da Idade Média, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o poder médico passa a ocupar um lugar privilegiado no controle da sociedade, de maneira que, a partir de então, são os “médicos” que definem a negatividade da morte voluntária, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura".
"Em uma sociedade que não quer saber da morte, que busca escondê-la
ou afastá-la a todo custo para impedir que ela aconteça, alguém que tente ou
que consiga tirar voluntariamente a própria vida, só poderia ser considerado,
no jargão mais “senso comum” possível, um louco. E é por aí que costumam
vir as justificativas do porquê as pessoas costumam tirar suas vidas".
Com essas terminologias, costuma-se desqualificar o ato daqueles que
tentam tirar a própria vida e daqueles que o conseguem fazê-lo. Ao desqualificá-lo,
também se estigmatiza esses sujeitos como alguém que não pode
estar são ou no controle da sua própria conduta e, com isso, acaba-se por
amordaçar o indivíduo e impedir que tudo aquilo que sua morte poderia trazer
à tona se manifeste. Há que se pensar que toda e qualquer morte traz à tona
algo sobre a sociedade em que ela acontece.
Em uma sociedade que de fato se preocupa com os indivíduos que a compõem
e não somente com a própria manutenção enquanto sistema sociopolítico e econômico, ao se constatar que existem muitas mortes de recém-nascidos,
essa sociedade pesquisará as causas disso, para entender o que está
acontecendo e fazendo com que esses recém-nascidos morram e buscará
tomar as providências cabíveis para evitar que isso permaneça ocorrendo. Se
o alto contingente de mortes for entre idosos, a mesma coisa. [...]A grande questão que se nos coloca é: o que traz à tona uma série de mortes
que se dão exatamente pela intenção do indivíduo de tirar a própria vida?"
[Em uma entrevista de um dos responsáveis pela Saúde Mental da Secretaria de Saúde de SP] continua dizendo que “cerca de 90 %
dos casos e 40% das tentativas de suicídio estão associados a transtornos
mentais, principalmente depressão e abuso de substâncias psicoativas” (CRP- SP, 2003 p.17). Ou seja, ao mesmo tempo em que se afirma que os fatores
determinantes são múltiplos e de interação complexa, na sequência, afirma-se
que mais de 90% dos casos de suicídio concretizados estão relacionados aos transtornos mentais, à depressão e ao abuso de substâncias psicoativas. Não
teriam tais fatores também determinantes múltiplos e de interação complexa?
Parece-me contraditório, logo após afirmar as múltiplas determinações de um
fenômeno, reduzi-las a apenas algumas, de ordem orgânica ou psíquica, a depender
da análise que se faça. Por fim, o uso das ciências exatas, de forma
imprecisa, para legitimar uma informação parcial.
[...] Podemos, então, trazer outra passagem que também nos remete
a essa mesma lógica, extraída de uma entrevista concedida à revista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo professor
Neury Botega, uma das grandes referências dos estudos sobre suicídio
em nosso país, que, com sua equipe, traduziu boa parte dos manuais da OMS
para o português e representa, tal como outros tantos, a visão hegemônica
acerca do fenômeno e de sua prevenção: “Em 97% dos casos, segundo vários
levantamentos internacionais, o suicídio é um marcador de sofrimento psíquico
ou de transtornos psiquiátricos” (BOTEGA, 2010).
Nesse caso, vale atentar para algumas questões: primeiramente, está falando
de 97% dos casos, ou seja, são praticamente todos, quase ninguém
escapa. Porém, o professor na sequência explica, sem esclarecer tal fato, que
ele está falando de duas questões distintas, mas que não necessariamente
aparecem como distintas em sua fala, mas são. Ele fala de sofrimentos psíquicos
e transtornos psiquiátricos. Nós não podemos esquecer que não necessariamente
esses dois fenômenos estão associados. Eles podem estar, podem
inclusive derivar um do outro, mas não necessariamente eles estão associados.
Quero ressaltar que, com isso, o sofrimento psíquico é algo da ordem da
vivência, algo da ordem da existência, todos nós mais hora ou menos hora, em
maior ou em menor intensidade, desenvolvemos sofrimentos psíquicos, o que
não é exatamente a mesma coisa no que se refere aos transtornos psiquiátricos."
Nilson Berenchtein Netto
EM: O Suicídio e os desafios para a Psicologia
(CFP, 2013)
Baixar o documento na íntegra em: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Suicidio-FINAL-revisao61.pdf
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