domingo, 21 de junho de 2015

VIDA REAL: Eu, Leitora “Tentei me matar pulando do 15º andar”

Por Gláucia Balbachan e Maria Laura Neves

O que leva alguém a se jogar do 15o andar? Pouca gente sobreviveu para responder. A fisioterapeuta Julia (*), 31 anos, conseguiu essa façanha. Deprimida, só queria aliviar a dor que sentia. A única saída, para ela, era o suicídio. Aqui, ela conta sua história para Gláucia Balbachan e Maria Laura Neves.

“Tinha 15 anos quando minha vida ficou sem sentido pela primeira vez. Perdi a calma. Os pensamentos ruins me dominavam. Me achava tonta, idiota. Não tinha fome nem sono. Passava noites em claro em meio a um turbilhão de autocríticas. Durante o dia, a angústia não me largava. Em casa, na sala de aula, no carro. Lembranças de momentos ruins voltavam a minha mente com frequência: um colega falando que eu não era inteligente, um ex-namorado dizendo que eu não era animada. Um replay de cenas humilhantes. Não tinha coragem de me abrir com ninguém.
Tudo começou porque fiquei com o medo de não passar no vestibular. Minhas notas eram altas, mas me sentia burra e incapaz. Durou alguns meses, passou com a terapia. A mesma coisa aconteceu quando estava terminando a faculdade de fisioterapia (*). Tinha medo de não virar uma boa profissional. As crises foram parecidas: surgiam sempre junto com uma insegurança com o que estava por vir. Medo do futuro, de fracassar. Quando passava, com ajuda de um terapeuta, levava uma vida normal. Os psicólogos nunca me diagnosticaram com depressão.
Depois que saí da faculdade, no ano 2000, vivi um período animado de solteirice, saía à noite e tinha vários amigos e peguetes. Comecei a namorar o Pedro (*), um amigo de escola, aos 27 anos. Estávamos solteiros e saímos uma noite para dançar. Não tinha a intenção de ficar com ele, mas nossos amigos vinham de cinco em cinco minutos dizer para eu mudar de ideia. Fizeram um lobby. Eu estava alegrinha, fui dançar perto dele e o abracei. Ficamos um tempão só abraçadinhos. Então eu o beijei. Foi uma delícia. Ficamos a noite toda grudados, mas não dormimos juntos. No dia seguinte, saímos outra vez. Não desgrudamos mais e assim começamos a namorar.
Depois de um ano e meio de namoro, nos casamos no civil. Sem festa, sem nada. Preferimos juntar dinheiro. Compramos um lindo apartamento, enorme, com varanda, churrasqueira, tudo o que sonhávamos, em uma área nobre da cidade de São Paulo. Nos mudamos em janeiro do ano passado. Dois meses depois, diminuí meu ritmo de trabalho. A ideia era ter mais tempo livre para terminar de arrumar a nova casa e me preparar para engravidar em 2009.
Parei de tomar pílula, mas nos protegíamos pela tabelinha. Nos primeiros meses no novo apartamento, fiquei resolvendo pendências do acabamento final: ia comprar piso, detalhes da mobília. Foram tardes muito gostosas e agitadas. Enquanto isso, sonhávamos com o nosso bebê, que nasceria em 2010.
Até que tudo ficou pronto e estava na hora de começar a me dedicar inteiramente à gravidez - que ainda não tinha acontecido. O que deveria ser um sonho virou um pesadelo. Passava muito tempo sozinha: pensando, pensando, pensando. Em mim e no bebê. Comecei a sentir um desânimo, um tédio. Foi tudo muito rápido. Dias depois, comecei a me sentir inútil, uma profissional fracassada. Me culpava por não estar trabalhando o suficiente e ganhando dinheiro. Minha cabeça se encheu de preocupações. Me comparava com outras mulheres e me achava menos inteligente, menos esperta, menos descolada, menos bonita do que elas. De tanto pensar que eu não prestava, fiquei ansiosa. Meu coração batia rápido, tinha insônia e falta de apetite. Também passei a sentir medo. Medo de não ser uma boa mãe, medo de não conseguir educar meu filho. Medo de os outros perceberem o quanto eu era incapaz. Sentia que jamais conseguiria escolher uma escola, a roupa, a comida da criança. Não teria discernimento. Me achava tonta, idiota, lerda. Os sintomas das crises anteriores reapareceram ainda mais intensos. A paz sumiu.
As cenas humilhantes do passado, como as frases que aquele ex-namorado me disse, reapareceram na minha cabeça. Os sentimentos ruins, o pessimismo, as autocríticas começaram a infestar minha mente com uma intensidade tão grande, que eu não conseguia pensar em outra coisa. Vivia com a ideia fixa de que eu não servia para nada. A única solução era morrer. Não conseguia pensar em outra coisa. Entrei em um looping do qual eu não conseguia sair. O desespero tomou conta de mim.
Embora minha cabeça estivesse uma merda, o casamento ia bem. O sexo continuava ótimo, éramos muito carinhosos um com o outro. Mas não tinha coragem de comentar com Pedro o que estava se passando naqueles dias. Fiquei com medo de que ele me abandonasse como fez um outro namorado, em uma das crises. Ele apenas perguntava por que eu andava tão quietinha. Eu dizia que eram problemas no trabalho.
Num sábado de janeiro, viajei para a casa da minha mãe no interior de São Paulo e contei tudo a ela. Disse que não tinha mais calma, mas não que queria me matar. Ela me levou ao centro espírita que frequentamos e tomei um passe. Rezei com fé, mas aqueles pensamentos ruins ficaram comigo. No dia seguinte, continuava triste. Não via graça em nada, sabe? Ficava me perguntando por que as pessoas trabalham, acordam. Mesmo a minha religião não permitindo, o suicídio continuava sendo minha única saída. Não dava mais para mim. O jeito era tentar resolver meus problemas em outra vida. Recomeçar do zero.
Voltei para São Paulo de carona com um tio na tarde do domingo. Ele me deixou em uma estação de metrô. Chovia quando saltei do carro. Estava completamente fora do ar. Tive a sensação de que tanto fazia o lado que eu fosse, o que aconteceria comigo. Se me roubassem, se me sequestrassem. Tanto fazia estar viva ou morta. Ninguém se importaria se eu morresse. Sofreriam um pouco, mas depois viveriam normalmente. Minha vida tinha perdido o sentido mais uma vez. Liguei para o Pedro me egar.Quando ele chegou, eu não disse o que sentia.
Quando chegamos em casa, deixei minha mala no quarto e fui para o escritório. Escrevi um bilhete de despedida, dizendo para minha família e para meu marido que eu os amava muito, mas que eu precisava me livrar do inferno em que andava minha cabeça. Disse que estava louca, confusa, que não aguentava mais. Estava procurando um lugar para pular, quando Pedro apareceu. Ele não viu o bilhete, disfarcei e ele não percebeu nada. Fomos ver televisão juntos e eu dormi nos seus braços. No dia seguinte, fui trabalhar. Estava tão fora de mim que não lembro de nada do que aconteceu naquela segunda. Me disseram, depois, que eu estava muito quietinha.
Na terça pela manhã acordei, me vesti e fui até o quarto que tínhamos feito de escritório. Estava decidida. Não pensei em nada nem em ninguém. Não hesitei, não tive medo de me arrepender. Nem dava para pensar nos outros, minha cabeça estava um turbilhão [faz movimentos circulares com a mão ao redor da cabeça e chora]. Uma ideia fixa me atazanava: não dá, desiste, não vai dar certo, vai embora, você nunca vai conseguir ser feliz nessa vida. Escrevi outro bilhete com o mesmo conteúdo do primeiro, coloquei em cima da mesa, com uma caneta em cima para o papel não voar e Pedro poder encontrar rapidamente o que seria a prova de que ele não tinha nada a ver com o meu suicídio. Como ele estava dormindo no quarto, achei que pudessem querer tentar incriminá-lo. Subi na cadeira, subi na mesa e sentei no parapeito da janela. Olhei para baixo e vi que havia homens trabalhando em uma obra na frente do meu prédio. Ninguém me viu. Foi minha última lembrança. Pulei do 15º andar.
Caí sentada em um vão do prédio, na grama. Embora eu tenha me quebrado inteira - coluna, bacia, costelas -, minha cabeça não sofreu nenhum arranhão. É um milagre eu estar andando [com ajuda de uma bengala]. Meu braço esquerdo absorveu a maior parte do impacto da queda porque bateu em uma laje antes de o meu corpo encostar no chão. Ele está destruído até hoje, sem sensibilidade, não consigo movê-lo. Fui encontrada pelo porteiro.
A lembrança seguinte é confusa. Uma mistura de sonho e realidade. Eu estava caminhando em um lugar de terra, indo para um campo de árvores secas, quando ouvi alguém dizer: 'Nesses casos não sobrevive, não'. Era um enfermeiro ou funcionário careca da UTI em que eu estava internada havia 15 dias. Fiquei com raiva. Pensei: 'Meu, estou viva e eu vou sobreviver'. Lembrei do que aconteceu. Rezei. Fiz barulhos com a boca para ele me ouvir. Depois, não lembro mais nada. Por causa da sedação, as memórias do período no qual fiquei internada na UTI são confusas.
Nos primeiros dias hospitalizada, eu não conseguia me mexer nem falar. As pessoas me perguntavam coisas e eu respondia 'sim' piscando uma vez. Minha família diz que eu conversei com ela várias vezes, mas não lembro. Uma das primeiras memórias que tenho desse período foi a de acordar e ver minha irmã e o Pedro no quarto. Ele me perguntou se eu queria que passasse a noite no hospital. Apertei as pálpebras com todas as forças que me restavam. Ele ficou até eu dormir.
Durante os dois meses e meio em que fiquei internada, recebi visitas todos os dias. Meu pais, que moravam no interior, se revezavam para passar o tempo todo comigo. Pedro vinha à noite. Minhas irmãs, meus tios, meus primos e meus amigos também apareciam com frequência. A família montou um mural com fotos da minha infância e adolescência na parede do quarto. Fizeram um almoço especial quando eu já podia comer. Queriam que eu lembrasse que a vida podia ser boa. Recebi carinho, amor. Em nenhum momento perguntaram por que eu tinha feito aquilo. Quanto mais eu percebia a dedicação que tinham comigo, mais eu me arrependia, sentia vergonha. Foi assim, vendo que tenho uma família maravilhosa, que recuperei a vontade de viver.
Eu não sabia que a enorme tristeza que sentia podia ter cura. Só descobri nas sessões de terapia do hospital que sofro de depressão. Meu humor ainda oscila muito. Tem vezes que passo o dia todo chorando. Outro dia fui ao shopping e vi um cadeirão de bebê para vender. Fiquei me perguntando por que as pessoas têm filhos, do que adianta viver. Tudo tinha perdido o sentido mais uma vez. Em outros momentos, fico melhor. Minha família tem medo que eu tente de novo. Mas não vou tentar.
Conforme fui melhorando, Pedro deixou de ir ao hospital. Em uma das suas últimas visitas, falei que queria voltar para nossa casa quando estivesse boa. Ele me disse que não conseguiria viver comigo naquele momento. Pediu para eu me colocar no lugar dele. 'Imagine se eu tivesse feito isso com você?', perguntou. De fato, se fosse o contrário eu teria ficado louca. Fiquei triste, mas entendi. Ele também não se recuperou do que aconteceu, deu uma pirada. Começou a me ligar no hospital chorando, raivoso, me culpando. Disse que estava feliz comigo antes da tentativa. Não conseguia me perdoar. Eu ficava desesperada com as coisas que ele dizia. Chorava também. Em uma dessas conversas, ele me disse que naquela noite em que dormimos abraçados ele estava com sede e não se levantou para beber água. Não queria me acordar. Perguntou, então, como eu pude ter feito aquilo com ele.
Vendemos nosso apartamento. Hoje, seis meses depois da tentativa, moro com meus pais no interior. Passo os dias indo a médicos, fazendo terapias. Não consigo mexer o braço esquerdo, que ainda está machucado. Falo com o Pedro quase todos os dias. Faço fisioterapia para voltar a andar sem bengala. Sinto dor quando fico sentada por muito tempo e por isso passo a maior parte do dia deitada. Acho que ele ainda não está bem. Ele não teve o apoio emocional que eu tive. Vivemos uma amizade colorida. Nos chamamos de 'amor, fofo', mas não estamos juntos. Eu ainda o amo e acho que poderemos voltar.'

Depoimento publicado na Revista Marie Claire de agosto de 2009. Disponível em http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,ERT96114-17597,00.html.



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