domingo, 17 de abril de 2016

Suicídio Indígena

O fenômeno suicídio não só mobiliza as emoções coletivas de uma sociedade, como adquire uma dimensão política, ideológica e social em torno da perspectiva de vida, já que muitas vezes diversos fatores de contexto não permitem que essa perspectiva seja desenvolvida plenamente.

O suicídio nas populações indígenas – em especial aquelas que possuem altas taxas, talvez as maiores do Brasil, como os Guarani Kaiowá – é altamente significativo como expressão do mal-estar social, mas essa situação não é exclusiva dos povos indígenas. Esse fenômeno é observado em diversos setores sociais no país. 

O suicídio indígena apresenta taxas elevadas no Canadá, Estados Unidos, Noruega, Austrália, Nova Zelândia e Brasil. A questão é que, na diversidade dos modelos econômicos, políticos e sociais desses países, apresenta-se a característica
comum de que os indígenas se suicidam de dez a vinte vezes mais que a população em geral. É significativo que a maioria destes suicídios se observe na população jovem, predominantemente masculina, mas também é possível enxergar altas taxas de suicídio feminino a partir dos 10 anos de idade.

Na maioria das vezes isso é atribuído a fatores culturais, como um caráter imputado pela sociedade majoritária. No entanto, isso requer uma melhor definição sobre a questão da cultura, que deve ser contextualizada nas condições materiais de vida em que o suicídio acontece com alta incidência.
Isso permite compreender melhor como as culturas interpretam os modos de morrer e sua correlação com as perspectivas de vida em economias de subsistência e de confinamento nas “reservas”. Além disso, é preciso ver a profundidade do fenômeno em termos psicológicos em um tipo de população que não tem uma Psicologia exclusivamente centrada no indivíduo. Esses povos possuem um modo de vida com maior interdependência coletiva, que define uma maneira de se vincular, de como se elaboram as emoções e de como se constroem os fenômenos em torno dos eventos da vida e da morte.

Entre os Guarani Kaiowá, o corpo do suicida deve ser retirado o mais rápido possível para evitar a exposição pública, especialmente das crianças. No caso dos jovens que reproduzem o ato suicida, e ainda que muitos desses jovens não necessariamente compartilhem os paradigmas de sua tradição cultural, é entendido socialmente que existem impulsos de morte estimulados pelo espírito do suicida que visita os familiares – ou fala com os amigos para não ficar na solidão e solicita sua companhia para a passagem a outro mundo. Por esses princípios, os rituais funerários do suicida diferem de outros óbitos considerados como naturais.

A magnitude da perda tem uma intensidade que está relacionada segundo
o vínculo mantido entre o suicida e as pessoas com as quais ele se relaciona,
isto é, a intimidade, intensidade do relacionamento, frequência do contato,
ou os tipos de ambivalência mantidos durante o vínculo. Os modos de morrer
também influenciam o processo de luto, por exemplo:

O impacto de uma morte inesperada ou esperada segundo as manifestações
prévias da pessoa (expressão de ideações de morte, tentativas de suicídio, condutas de risco etc.);

A consideração social de que uma morte é natural ou não natural. Na perspectiva da cultura Guarani Kaiowá, o suicídio é sempre considerado como uma morte não natural já que, na maioria dos casos, é atribuída à intervenção da feiticeira como modelo explicativo. Segundo relatos de sobreviventes às tentativas de suicídio, a morte provocada seria um ato natural de passagem para “a terra sem mal”, o ideal de mundo na cosmovisão dessa cultura;

O método ou o tipo de violência utilizada pode variar entre a utilização de químicos (drogas ou venenos) até as armas de fogo. Entre os Guarani Kaiowá o método mais frequente utilizado é o enforcamento ou a sufocação (estrangulamento das vias aéreas com cadarços, roupas,com a pessoa posicionada de joelhos e as cordas ou outros meios fixados em objetos de baixa altitude).

O impacto da perda acontece de maneira imediata nos familiares e amigos em todas as sociedades. Esse impacto é mais evidente nos óbitos por suicídio comparados com outros tipos de morte. Esse é um fenômeno multiforme, complexo, construído e manifestado social e culturalmente.

Na pósvenção realizada no caso do suicídio indígena ou dos homicídios, devem ser considerados certos aspectos particulares:
A evidência empírica demonstra que a sequência temporal entre os casos acontecidos na mesma família gera um impacto imediato. Consequentemente, consideramos que a pósvenção deva ser realizada no máximo nos 15 dias após o evento. Ainda que em termos gerais se mencione que os indígenas são impulsivos, o processo de construção da morte leva muitos anos, com uma série de sintomas e sinais muito sutis e, muitas vezes, sem nenhum tipo de manifestação significativa;
A escuta é fundamental porque geralmente o jovem indígena tem voz e escuta limitada entre os adultos e tem um limitado apoio sobre o que ele espera;
A pósvenção deve incluir um tipo de apoio físico ou corporal, já que a relação entre a Psicologia e o paradigma cultural da concepção de espírito é de fundamental importância. Essa situação de conflito se expressa no corpo, especialmente na síndrome cultural conhecida como Nhemerõ – termo que pode ser traduzido como “dor de romper o coração”, ou seja, o sofrimento psíquico é simbolizado no órgão que expressa as emoções;
A questão do tempo (o suicídio acontece geralmente durante a noite) e o espaço (aconteceram casos em que o ato suicida é realizado no lugar onde seu irmão ou parente foi assassinado, ou perto do domicílio) representam que o ato de morrer é um ato simbólico que reúne um espaço de morte essencialmente familiar;
As particularidades emocionais observadas em conflitos familiares ou de atos de censura como a humilhação pública do jovem possuem uma ressonância de uma maneira tão significativa que pode ser causa ou motivo de suicídio.


Carlos Coloma in "O Suicídio e os Desafios para a Psicologia"
Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: CFP, 2013.


Nenhum comentário:

Postar um comentário