quarta-feira, 29 de julho de 2015


Uma música que traz uma mensagem linda, tanto para quem está passando por um momento difícil quanto para aqueles que estão por perto ...

domingo, 26 de julho de 2015

"O que fazer para que a vida miserável que faz com que as pessoas desejem a morte não permaneça a mesma e para que as pessoas não tenham que suportar essa condição, pelo bem daquilo que elas mal conhecem, mas que elas entendem ser necessário? Essas mortes, então, deveriam nos levar a algumas reflexões que são importantes de serem feitas. Como nós profissionais da saúde, seja no âmbito da prevenção, seja no âmbito da promoção da vida estamos agindo? Vale lembrar que para prevenir o suicídio ou promover a vida não se precisa tocar especificamente ou diretamente no assunto do suicídio, trata-se, justamente, de promover ou valorizar entre as pessoas a questão da vida. Mas qual vida nós queremos valorizar? Quais condições de vida? Quantas vezes faz-se com que o sujeito permaneça vivo, mas sem lhes dar qualquer condição de entender por que ele está buscando a morte, por que ele está desejando essa morte. Ele simplesmente continua suportando aquela condição por achar que é um pecado, por não querer causar um transtorno ainda maior para sua família, acaba suportando essa condição miserável de vida que lhe é imposta, sem sequer questioná-la, muitas vezes por não compreendê-la, ou não saber ou acreditar que é possível mudá-la. Junte-se a isso a medicalização da vida e teremos um bom retrato do que vem acontecendo. Mantém-se, a qualquer custo, as pessoas vivas e para que possam suportar aquela existência degradante à qual estão submetidas cotidianamente, é oferecida como solução a utilização de psicofármacos, que em absoluto transformam a realidade adoecedora em que vivemos, mas que, ao atuar em nossa química orgânica, dá-nos uma percepção distinta dessa realidade, que permanece a mesma, aquela, que até então nos fazia desejar a morte. Não se trata aqui de uma apologia contra a utilização de medicamentos, esses, quando corretamente administrados, cumprem um papel importante em nossa sociedade, contudo, esse uso “ideologizante” do medicamento apenas encobre os sintomas que se manifestam nos indivíduos, sem tocar em suas profundas raízes sociais. 
Atua-se nas pessoas individualmente, quando se trata de um problema social."

- Nilson Berenchtein Netto
EM: O Suicídio e os desafios para a Psicologia
(CFP, 2013) 




"É principalmente a partir de Agostinho de Hipona (séc. V), também chamado por alguns de Santo Agostinho, que a morte de si passa a ter uma conotação pecaminosa. Posteriormente, ainda na Idade Média, passa a ser compreendida como crime, porque lesava os interesses da Coroa: aqueles que se matavam tinham seus bens confiscados pela Coroa, em detrimento de suas famílias, e os cadáveres eram penalizados. Ao final da Idade Média, com a separação entre a Coroa e a Igreja, o poder médico passa a ocupar um lugar privilegiado no controle da sociedade, de maneira que, a partir de então, são os “médicos” que definem a negatividade da morte voluntária, deslocando o fenômeno do pecado à patologia e qualificando-o como loucura". 

"Em uma sociedade que não quer saber da morte, que busca escondê-la ou afastá-la a todo custo para impedir que ela aconteça, alguém que tente ou que consiga tirar voluntariamente a própria vida, só poderia ser considerado, no jargão mais “senso comum” possível, um louco. E é por aí que costumam vir as justificativas do porquê as pessoas costumam tirar suas vidas".

Com essas terminologias, costuma-se desqualificar o ato daqueles que tentam tirar a própria vida e daqueles que o conseguem fazê-lo. Ao desqualificá-lo, também se estigmatiza esses sujeitos como alguém que não pode estar são ou no controle da sua própria conduta e, com isso, acaba-se por amordaçar o indivíduo e impedir que tudo aquilo que sua morte poderia trazer à tona se manifeste. Há que se pensar que toda e qualquer morte traz à tona algo sobre a sociedade em que ela acontece. Em uma sociedade que de fato se preocupa com os indivíduos que a compõem e não somente com a própria manutenção enquanto sistema sociopolítico e econômico, ao se constatar que existem muitas mortes de recém-nascidos, essa sociedade pesquisará as causas disso, para entender o que está acontecendo e fazendo com que esses recém-nascidos morram e buscará tomar as providências cabíveis para evitar que isso permaneça ocorrendo. Se o alto contingente de mortes for entre idosos, a mesma coisa. [...]A grande questão que se nos coloca é: o que traz à tona uma série de mortes que se dão exatamente pela intenção do indivíduo de tirar a própria vida?"


[Em uma entrevista de um dos responsáveis pela Saúde Mental da Secretaria de Saúde de SP]  continua dizendo que “cerca de 90 % dos casos e 40% das tentativas de suicídio estão associados a transtornos mentais, principalmente depressão e abuso de substâncias psicoativas” (CRP- SP, 2003 p.17). Ou seja, ao mesmo tempo em que se afirma que os fatores determinantes são múltiplos e de interação complexa, na sequência, afirma-se que mais de 90% dos casos de suicídio concretizados estão relacionados aos transtornos mentais, à depressão e ao abuso de substâncias psicoativas. Não teriam tais fatores também determinantes múltiplos e de interação complexa? Parece-me contraditório, logo após afirmar as múltiplas determinações de um fenômeno, reduzi-las a apenas algumas, de ordem orgânica ou psíquica, a depender da análise que se faça. Por fim, o uso das ciências exatas, de forma imprecisa, para legitimar uma informação parcial.

[...] Podemos, então, trazer outra passagem que também nos remete a essa mesma lógica, extraída de uma entrevista concedida à revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo professor Neury Botega, uma das grandes referências dos estudos sobre suicídio em nosso país, que, com sua equipe, traduziu boa parte dos manuais da OMS para o português e representa, tal como outros tantos, a visão hegemônica acerca do fenômeno e de sua prevenção: “Em 97% dos casos, segundo vários levantamentos internacionais, o suicídio é um marcador de sofrimento psíquico ou de transtornos psiquiátricos” (BOTEGA, 2010). Nesse caso, vale atentar para algumas questões: primeiramente, está falando de 97% dos casos, ou seja, são praticamente todos, quase ninguém escapa. Porém, o professor na sequência explica, sem esclarecer tal fato, que ele está falando de duas questões distintas, mas que não necessariamente aparecem como distintas em sua fala, mas são. Ele fala de sofrimentos psíquicos e transtornos psiquiátricos. Nós não podemos esquecer que não necessariamente esses dois fenômenos estão associados. Eles podem estar, podem inclusive derivar um do outro, mas não necessariamente eles estão associados. Quero ressaltar que, com isso, o sofrimento psíquico é algo da ordem da vivência, algo da ordem da existência, todos nós mais hora ou menos hora, em maior ou em menor intensidade, desenvolvemos sofrimentos psíquicos, o que não é exatamente a mesma coisa no que se refere aos transtornos psiquiátricos."

Nilson Berenchtein Netto
EM: O Suicídio e os desafios para a Psicologia
(CFP, 2013) 





quarta-feira, 22 de julho de 2015

"Nossos hospícios estão ficando cada vez mais lotados. Eu estava trabalhando na Prevenção de Suicídios em Los Angeles, e o meu telefone tocava dia e noite, de modo que deve haver alguma coisa errada em algum lugar. Estamos desnorteados e acho que um dos motivos é essa ideia de que "eu o amo se". Se todos tivessem pelo menos uma pessoa na vida que dissesse: 'Eu o amo, de qualquer jeito. Eu o amo mesmo que seja burro, que escorregue e caia de cara, que erre, que se comporte como um ser humano ... eu o amo de qualquer jeito', então nunca haveriam de acabar num hospício. E é assim que deveria ser o casamento. Mas é assim? E é assim que deveria ser a família. Mas é assim?
[...] O ser humano precisa de alguém que se interesse por ele. Mais uma vez, uma pessoa, apenas, mas alguém que realmente se interesse."

- Leo Buscaglia em "Vivendo, amando e aprendendo" (p. 68)   


"Estamos constantemente nos afastando dos outros ...
Os existencialistas dizem que sempre acreditamos que somos invisíveis e que algumas vezes cometemos suicídio para afirmarmos o fato de termos vivido".

- Leo Buscaglia em "Amor" (p. 34)


domingo, 19 de julho de 2015

Domingo, 12 de Julho de 2015 - 00:00
'Quanto menos se fala no suicídio, mais propício que ele aconteça', diz especialista
por Renata Farias / Lucas Cunha


'Quanto menos se fala no suicídio, mais propício que ele aconteça', diz especialista Soraya Carvalho, do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio. 



Em termos mundiais, o suicídio é a principal causa de morte de pessoas entre 15 e 29 anos. No Brasil, é o terceiro fator que mais mata nessa faixa etária, perdendo apenas para homicídios e acidentes de trânsito. Com o objetivo de tentar evitar que esses números aumentem, existe no Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) o Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (Neps), parte integrante do Centro de Informações Antiveneno (Ciave). Criado em 2007, o Neps busca acompanhar pacientes que tentaram suicídio e oferecer tratamento àqueles que não tentaram, mas correm esse risco. Em entrevista ao Bahia Notícias, a idealizadora e coordenadora do Neps, Soraya Carvalho, explicou o funcionamento do espaço, desafios enfrentados e problemas ligados ao suicídio. "Quanto menos a gente fala sobre o assunto, mais propício que ele aconteça. Quando a gente desmistifica e diz coisas como 'isso pode acontecer com qualquer pessoa' ou 'ele vinha se manifestando dessa maneira', mostra que as pessoas devem estar atenta a sinais", explicou a psicóloga sobre como ajudar um possível suicida.


Quais são as principais atividades realizadas pelo Neps?

Vou só fazer uma introdução, porque antes do Neps propriamente dito, já existia um serviço de psicologia do Centro de Informações Antiveneno, onde era prestado atendimento e acompanhamento psicológico de pacientes que haviam tentado suicídio e eram socorridos na emergência do Hospital Roberto Santos. O atendimento começava na emergência, se estendia durante todo o período em que o paciente permanecia internado e, após a alta, havia o atendimento ambulatorial. Depois de 16 anos de funcionamento com esse formato, sugeri à direção na época que nós ampliássemos o serviço. Que ele deixasse de ser só um serviço de assistência e que passasse a ser também um trabalho no nível da prevenção. Nós mantivemos o formato anterior, de atender pacientes que haviam tentado suicídio, e passamos a atender também pacientes que ainda não haviam tentado, mas que corriam o risco de fazê-lo. Normalmente, pacientes com depressão grave e que tenham ou não já tentado suicídio. Atualmente, além de acompanhamento psicológico, o paciente também já dispõe de um acompanhamento psiquiátrico e de terapia ocupacional. Os atendimentos são individuais e também de grupo, no caso da terapia ocupacional.


Como esses pacientes chegam até o núcleo?

Existem duas portas de entrada: a primeira seria pela emergência do Hospital Roberto Santos, após a tentativa de suicídio, ou por meio do ambulatório, que pode ser por demanda espontânea ou encaminhado por um profissional da saúde. Então se um paciente ou a família reconhece a necessidade, ele pode se dirigir diretamente e pedir o atendimento. O único problema que nós temos atualmente é que o Neps cresceu muito - hoje temos dois psicólogos, três psiquiátricas, duas terapeutas ocupacionais e uma enfermeira -, mas nós não damos conta da demanda. Para se ter uma ideia, nós temos uma média de 100 novos casos de tentativas de suicídio por mês. Salvador é considerada a capital com menor índice de suicídios no Brasil. Ainda assim, nós temos uma média de 100 novos casos todo mês. Então existe uma demanda muito grande. Para resolver esse problema, nós estamos organizando um curso de capacitação de atendimento de pacientes suicidas dirigido para profissionais da saúde mental para que os Caps [Centro de Atenção Psicossocial], os centros de saúde e os próprios hospitais que trabalham na linha da saúde mental. O formato que a gente acolhe esses pacientes é completamente diferente daquele usado para pacientes com transtornos mentais no geral. É necessário que esses profissionais estejam capacitados para atender a essa demanda e, dessa forma, resolver o problema da lista de espera que a gente já tem.


De que forma é realizado o atendimento? O paciente é internado?

O Neps, na verdade, é um ambulatório de saúde mental que funciona dentro do Hospital Roberto Santos.. Ele não funciona 24 horas. O paciente é atendido em uma consulta ambulatorial ou está internado por conta de intoxicação. Esse paciente recebe atendimento enquanto está internado no hospital e, após a alta, no nível ambulatorial. Não existe internamento no Neps. O Neps funciona no Hospital Geral Roberto Santos (HGRS)

Qual a taxa de suicídios e de tentativas de suicídio na Bahia?

Segundo os dados da OMS, registra-se uma média de 1 milhão de suicídios por ano no mundo, o que corresponderia a um sucídio a cada 40 minutos. No Brasil, nós temos um suicídio a cada hora, o que daria 3 mil suicídios por ano. Na Bahia, esses índices são bem menores. Em geral, o Brasil tem uma média de 4,5 a 5,6 suicídios por cada 100 mil habitantes. Essa média é considerada baixa com relação ao resto do mundo. Entretanto, nós ocupamos o nono lugar no ranking mundial em números absolutos. O suicídio é um problema de saúde pública mundial e nós não temos um programa nacional de prevenção do suicídio. Começa a surgir, de forma muito incipiente, o primeiro plano em Brasília, mas ainda não temos um plano nacional. Existem núcleos locais pondo em prática. Voltando aos números, estima-se de 10 a 25 tentativas de suicídio para cada suicídio. Se a gente tem 1 milhão de suicídios no mundo, a gente pode ter 25 milhões de tentativas. O que se gasta anualmente para tratar o suicídio e suas sequelas é equivalente ao custo de uma guerra. Há estudos que mostram ainda que já morreu mais gente por suicídio, na história da humanidade, do que em guerras. Outro dado interessante é que ele é a primeira causa de morte no mundo entre pessoas de 15 aos 29 anos. Já no Brasil, é a terceira causa de morte nessa faixa etária. A gente só perde para os homicídios e os acidentes de trânsito.


Apesar desses números alarmantes, há uma espécie de regra sobre não se falar em suicídios. Por que isso?

Suicídio e a morte são temas que não se quer falar ou ouvir. Existe até mesmo um mito de que a imprensa não deve divulgar, porque, quanto mais você divulga, mais promove novos suicídios. Existe até um manual de prevenção do suicídio para a imprensa. Na verdade, existem vários manuais confeccionados pela OMS, por uma equipe coordenada por um brasileiro, Manoel Bertolote, que servem para orientar diferentes profissionais sobre como contribuir para a prevenção do suicídio. No que diz respeito à imprensa, sabe-se que os casos não devem ser divulgados de forma sensacionalista, porque isso promove de alguma forma novos suicídios. Ainda assim, a gente sabe que a imprensa tem um papel fundamental, porque divulga os fatores de risco, os sinais e sintomas para que a população possa identificar e encaminhar para os locais especializados para tratamento os possíveis pacientes.


No jornalismo, não divulgamos suicídios. Em alguns casos, é apresentado o comportamento do paciente anteriormente à morte. Deixar a entender que foi um suicídio é um tipo de alerta positivo?

Acho que o papel da imprensa é justamente divulgar que está muito próximo. A gente não pode deixar de falar no assunto, porque o suicídio é apenas uma saída para a vida. Eu costumo dizer que o suicídio é uma carta na manga, é aquilo que o sujeito pode dispor quando a vida lhe parece insuportável. Não é inumano tentar se matar. Quanto menos a gente fala sobre o assunto, mais propício que ele aconteça. Quando a gente desmistifica e diz coisas como “isso pode acontecer com qualquer pessoa” ou “ele vinha se manifestando dessa maneira”, mostra que as pessoas devem estar atenta a sinais. Nessa questão das redes sociais, por exemplo, nós vemos que os pacientes falam coisas como “a vida está muito difícil, eu não vou suportar”, “se eu pudesse, eu morria”, “por que Deus não me dá um câncer?”. Quando os amigos sabem que essas falas são um sinalizador de que a pessoa não está bem, eles podem ajudar. O importante é nunca dizer coisas como “tire isso da cabeça”, porque isso é o comum para muitas pessoas e é um grande problema. Quanto menos a gente permite que o sujeito fale, maior a chance dele atuar. Se a gente puder perguntar o que está havendo e suportar o que o outro vai dizer, é a melhor forma de ajudar, e não dizendo que está tudo bem, que é para ele tirar aquilo da cabeça e que a vida é bela. A melhor forma de ajudar é acolher, suportar o que essa pessoa tem a dizer e, se for o caso, levá-lo a uma ajuda especializada. Então, voltando à pergunta, a imprensa é fundamental quando ela diz o desmembramento de uma pessoa em depressão que pode chegar ao suicídio. Então, se a sociedade está atenta e tem informação, ela pode intervir. A base de tudo é a informação, então a imprensa é fundamental.


Então a tecnologia tem um papel positivo sobre isso? Quais as consequências negativas das redes sociais, por exemplo?

Positivo se for bem utilizado. O problema é que também pode ser utilizado negativamente. A gente sabe que existem comunidades de pessoas que ensinam as outras a se suicidar ou de pessoas que se autoflagelam e mostram essas fotos. Esses grupos têm um efeito bacana no sentido de que, de alguma maneira, eles se ajudam, mas podem também trazer outros prejuízos se não forem bem conduzidos. Algumas pessoas, por exemplo, podem usar a internet para perguntar como se matar. Essa pergunta pode ser acolhida por alguém que ensine ou por pessoas que perguntem o que está havendo ou ainda por outros que digam coisas como “você está maluco?”, “não tem o que fazer?”. Uma vez, um paciente falou para mim: “a gente já sofre tanto, já é tão difícil, e quando a gente procura um meio para se matar, ainda vêm crucificar a gente, como se as pessoas não tivessem o direito a morrer da mesma forma que têm o direito de viver”. O grande problema é que quando as pessoas dizem “eu quero morrer” não significa necessariamente “eu vou me matar”. Pode significar “eu não quero viver essa vida”. Entretanto, essas pessoas ainda não têm o desejo, intenção ou coragem de se matar, mas elas levam tanto tempo esperando que a morte aconteça com um acidente ou por obra do destino que acabam tendo que fazer isso com as próprias mãos. Por isso, sempre que alguém diz “eu quero morrer”, eu levo a sério.




Quais são os preconceitos por parte de médicos ou até mesmo da família com relação a pessoas que tentam se matar?

Em um artigo que escrevi, eu digo que o suicida subverte a ordem médica, porque, ao longo da história da humanidade, o médico foi adquirindo um saber sobre a vida e sobre a morte. Esse saber conferiu a ela um certo poder. O suicida é aquele que prescinde o saber médico, então o médico entende isso como um desafio ao seu poder. O suicida é geralmente uma persona non grata. Em outro trabalho que realizei, coletei de pacientes o que eles ouviam ao chegar nas emergências: “você não queria se matar, você queria atrapalhar o meu plantão”; “da próxima vez, você vai no Elevador Lacerda e se joga que é tiro e queda”; “isso é falta de Deus, falta de fé”; “isso é falta de vergonha! Não tem o que fazer?”; “tentou suicídio por causa de namorado com tanto homem por aí no mercado”. São abordagens absolutamente inadequadas, até porque, se uma pessoa tenta o suicídio porque o namorado terminou, essa pessoa está precisando de ajuda, não de críticas ou humilhação. Se a pessoa partiu para uma tentativa de morrer é porque o sofrimento se tornou insuportável. É justo que a equipe de saúde que atende essas pessoas tenha outra postura. Se o médico se destitui desse lugar de poder para olhar o outro como um ser humano que sofre, isso pode ter outra forma de entendimento. O mesmo acontece com a família. No Neps nós realizamos reuniões com familiares com o objetivo de informar. A família, normalmente, tem uma ideia muito distorcida e tão preconceituosa acerca do suicídio e da própria depressão. A gente inicialmente acolhe o que eles pensam e depois começa a discutir uma nova forma de olhar e desmistificar esses problemas. Eles chegam com um ponto de vista e saem de lá pensando de uma forma diferente, com um olhar mais acolhedor e cuidadoso. Outro trabalho que a gente faz - que tá parado atualmente por falta de verba - é mensalmente ir até o interior para capacitação das Dires [Diretorias Regionais de Saúde], principalmente dos agentes comunitários, que vão até as casas. Dessa forma a gente dá ferramentas para que eles identifiquem na comunidade e encaminhem para a rede.


Quais foram os principais desafios enfrentados nesses anos de trabalho?

Acho que o maior desafio que a gente encontra hoje é a dificuldade de atender toda essa demanda. Me angustia ver tanta gente esperando, sendo que é uma clínica da urgência. A gente deveria ter mais gente trabalhando, por isso a gente está correndo com o curso de capacitação para os Caps. Outra coisa que a gente considera muito difícil é que, com a reforma psiquiátrica, os hospitais psiquiátricos fecharam. É ótimo que isso tenha acontecido, porque era desumano no formato que existia. Só que, para fechar os hospitais psiquiátricos, deveriam criar outras formas de atendimento, por exemplo, os Caps. No caso das curtas internações, o Caps III. Nós não temos Caps III em Salvador, então aquelas pessoas que precisam de internação não têm para onde ir. Não temos para onde encaminhar um paciente grave. Existe um interesse de se criar leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Isso existe no Hospital das Clínicas, que foi o primeiro do Brasil a fazer isso. Ainda assim, é apenas feminino. Para um paciente que quer morrer, a internação em moldes que eram feitos anteriormente não é interessante, mas uma curta internação é importante para conter aquele impulso, quando não há tempo para fazer um tratamento. O maior desafio é não ter para onde encaminhar os pacientes graves. No mais, eu nunca tive problema com apoio, porque é um serviço sério e comprometido. Para você ter uma ideia, os pacientes que a gente acompanha têm nosso celular pessoal, porque em um momento de crise, mesmo fora do horário comercial, eles podem nos contactar. Uma vez, em um congresso, um rapaz me perguntou se não era muita invasão de privacidade dar o celular pessoal. Eu respondi que têm pessoas que escolhem ser jornalistas e são acordadas no meio da madrugada para cobrir um furo. Outras escolhem ser obstetras e são acordadas para trazer alguém à vida. E tem pessoas, como eu, que escolhem ser psicólogas ou psicanalistas, trabalhar com suicídio e são acordadas para manter alguém vivo. Porque é diferente você ligar para o CVV [Centro de Valorização da Vida], que é um programa maravilhoso, e não saber quem está do outro lado da linha, e ligar para alguém que já acompanha todo o seu processo.


Qual a média de atendimento mensal do Neps?

Uma média de 500 atendimentos, porque tem pacientes que a gente atende uma vez por semana, outros duas, outros três. Quem determina a necessidade do paciente somos nós a partir das condições de cada um. Com relação ao número de pacientes, é dificílimo dizer, porque é uma clientela que está em atendimento, abandona, depois volta. E nós sempre acolhemos quem retorna, porque é um comportamento normal. Para trabalhar com suicídio é preciso ter ânimo, atenção, interesse, que é uma coisa imprescindível. Uma vez, eu estava atendendo um paciente, e ele chegou com três horas de atraso. Eu voltei, porque eu sempre volto, nem que seja para falar por cinco minutos. Eu perguntei o que houve, e ele respondeu “eu não vinha, porque não tinha o dinheiro do transporte, mas resolvi vir”. Ele morava na Mata Escura, e a mulher dele perguntou como ele iria. “Eu vou andando e volto com a música”, ele respondeu. Quando perguntei sobre a música, ele me contou que escreve músicas, então eu pedi para ele cantar para mim. Ele falou “poxa, estou me sentindo iluminado, porque foi a primeira vez que alguém me pediu para ouvir minhas músicas”. Eu não fiz nada demais, apenas ouvi com interesse. Outra coisa importante é a neutralidade, ouvir sem censura o que aquela pessoa tem a dizer, mas não quer dizer ser passivo.


E quais são os sintomas para os quais as pessoas devem estar atentas?

A pessoa começa a mudar sua atitude diante da vida, como não sair mais, não querer mais ter contato com pessoas. Perde-se o interesse pela vida, até mesmo o interesse sexual. A pessoa passa a apresentar ou tristeza ou irritabilidade e sempre tem angústia. E algumas se referem à angústia como uma dor no peito. A medicina hoje já reconhece a dor da angústia como semelhante à dor precordial, ou seja, a dor do infarto. Estudos mostram que 55% das pessoas que se dirigem às emergências achando que estão infartando estão, na verdade, tendo uma crise de angústia. A dor é tão dilacerante que algumas pessoas se matam para se livrarem dessa dor. Quando a pessoa começa a sentir tristeza, angústia, irritabilidade, falta de desejo, interesse e motivação, a gente percebe que tem alguma coisa errada. Então ela começa a verbalizar que não tem mais vontade de viver. Quando isso acontece é porque, muitas vezes, já estão planejando como fazer. Há distúrbios também como alimentares: a pessoa pode comer demais ou de menos. Há o distúrbio do sono, quando geralmente dormem pouco. As pessoas acordam de madrugada e não conseguem mais dormir.

Matéria original em: http://www.bahianoticias.com.br/saude/entrevista/351-039quanto-menos-se-fala-no-suicidio-mais-propicio-que-ele-aconteca039-diz-especialista.html







"Não podemos esquecer que há uma coexistência de desejos e atitudes antagônicas que capturam a indecisão do indivíduo frente à vida. Ele deseja morrer e, simultaneamente, deseja ser resgatado ou salvo. Atos estereotipados de tomar psicotrópicos e telefonar em seguida para conhecidos solicitando ajuda expressam ambas as faces do ato. A maioria dos pacientes suicidas é ambivalente, incorpora uma batalha interna entre o desejo de viver e o desejo de morrer".

"O profissional sente-se, frequentemente, entre dois pólos: de um lado, deve respeitar os sentimentos da pessoa, incluindo seu desejo de morte, ou sua ambivalência entre viver e morrer; de outro, já ao final de um primeiro atendimento, deve tomar medidas concretas para evitar que um paciente atormentado se mate, o que inclui uma possível decisão de uma internação involuntária.

É inegável que diante da urgência e da angústia que a tentativa ou a ideação suicida nos impõe, cuidadores e profissionais de saúde podem ser levados a tentar conduzir o paciente para algo em que realmente acreditam (uma ideologia, uma fé). No entanto, separar estas crenças, sentimentos ou desejos, sem as negar, faz parte do treinamento, complexo e geralmente sofrido, dos profissionais de saúde."

"Em síntese, podemos dizer que os elementos básicos do atendimento de uma pessoa em crise suicida são:
• ouvir. Em geral, precisa-se ouvir muito, pois o paciente necessita falar sobre seus pensamentos e sentimentos. Há situações, no entanto, em que o profissional precisa ser mais ativo, incentivando o diálogo em busca de soluções, ou tomar ele próprio decisões emergenciais de proteção à vida;
• aceitação dos próprios sentimentos, incluindo-se tolerância à ambivalência (que é a coexistência, bastante perturbadora, de sentimentos opostos). O profissional deve se aliar à parte do paciente que deseja sobreviver;
• um ponto de apoio, como uma boia a qual a dupla terapeuta/ paciente possa tomar fôlego e continuar depois. Às vezes, já ao fim do primeiro contato, é preciso vislumbrar um ponto por onde começar a organizar o caos emocional. Um ponto de esperança, poderíamos também dizer."

Detecção do risco de suicídio nos serviços de emergência psiquiátrica

- José Manoel Bertolote, Carolina de Mello-Santos e Neury José Botega.

Artigo completo disponível em: 


quarta-feira, 15 de julho de 2015

“Cada desperdício de um destino, um indivíduo que se proíbe de se desenvolver naturalmente conforme suas capacidades ou até além delas, me parece tão trágico e tão importante quanto uma guerra. Pois é a derrota de um ser humano – que vale tanto quanto milhares.
Não devíamos escrever artigos e fazer passeatas apenas contra a guerra, a violência, a corrupção e a pobreza, mas proclamar a importância do que semearam em nós, indivíduos. De como o devemos cuidar, no tempo que nos foi dado para essa jardinagem singular”.

- Lya Luft in Perdas & Ganhos (p. 28)   



Entrevistas da Semana

09/02/2008 - 10:40 | EDIÇÃO Nº 508 

"Há um centro de valorização da morte na internet"
O psicanalista afirma que é preciso punir aqueles que incitam os internautas fragilizados ao suicídio
ELIANE BRUM



O psicanalista Mário Corso só aceitou dar esta entrevista porque tem convicção de que Vinícius Gageiro Marques, o Yonlu, foi vítima de um crime. E por que esse crime, praticado nas “ruas escuras da internet”, segue levando adolescentes frágeis à morte. Foi uma decisão difícil. Corso era o psicanalista do garoto de 16 anos que se suicidou ao se trancar no banheiro com duas churrasqueiras em chamas em julho de 2006. Seu paciente planejou a própria morte com a ajuda de sites na internet e a transmitiu em tempo real, incentivado por participantes de um chat. Quando Corso chegou ao apartamento da família, em Porto Alegre, Yonlu já estava morto.

É terrível para qualquer pessoa falar sobre a perda de uma vida. E é preciso muita coragem para um psicanalista submeter-se à tremenda exposição que é falar sobre a perda de um paciente. Depois de conversar com a mulher, a também psicanalista Diana Corso, e as duas filhas, ele aceitou dar entrevista a Época em nome do interesse público. Mário Corso acredita que é preciso caçar aqueles que incitam pessoas ao suicídio, encobertos covardemente pelo anonimato da rede.

Ao longo da entrevista de mais de duas horas, em seu consultório na capital gaúcha, a dor do psicanalista era exposta. A da família também. Sua mulher ligou três vezes para saber se ele estava bem. Diana tinha razão para preocupar-se. A taquicardia era perceptível, em muitos momentos ele ficava ofegante, a voz quase sumia. Mário Corso sofria. Não só porque doía falar sobre algo tão brutal, mas também porque ele sente saudades de Yonlu.
ENTREVISTA
Mário Corso
QUEM É
Psicanalista, casado, tem duas filhas e 48 anos. Nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. É professor e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)

O QUE PUBLICOU 
Monstruário (Tomo Editorial) e Fadas no Divã (Artmed), em co-autoria com sua mulher, a psicanalista Diana Corso

ÉPOCA – Por que você aceitou dar essa entrevista? 

Mário Corso – Porque esses suicídios seguem acontecendo, incitados por pessoas na internet, pessoas que não sabemos quem são e que não são responsabilizadas pelo que fazem com adolescentes, pelo que dizem a pessoas fragilizadas. Decidi dar essa entrevista porque isso é um crime e precisa parar. Temos um CVV, Centro de Valorização da Vida. E na internet há um CVM, Centro de Valorização da Morte. Talvez a gente nem saiba sobre outros suicídios que aconteceram por aí, que tiveram como fator decisivo algum tipo de CVM. Essas coisas não são tão fáceis de saber. Mas precisamos ter com essas pessoas a mesma preocupação que temos com outros criminosos. Já existe uma preocupação grande com a pedofilia, uma caça aos pedófilos na internet. Eu decidi dar esta entrevista porque acho que a gente tem de caçar essa gente também. Antes que eles matem mais. Eu acho que temos de aprender a lidar com o fator mórbido da internet, que são esses grupos de auto-ajuda que servem para não deixar de ficar doente, para não deixar de usar drogas, para não parar com a bulimia, com a anorexia. E temos de aprender a lidar com essa gente covarde que diz a um adolescente para se matar. A gente tem de criar formas de responsabilizar quem faz esse tipo de coisa.

ÉPOCA – Na carta que deixou aos pais, Vinícius escreveu que você poderia ajudá-los a entender as razões do suicídio. Por que ele se suicidou? 

Corso – Esse menino estava numa crise prolongada de angústia. Não foi a primeira tentativa de suicídio dele. Ele já havia tido crises anteriores que conseguiu contornar. Uma vez ele se sentou na beira da cobertura e me ligou. A gente ficou falando um bocado de tempo sobre se valia a pena pular ou não. E ele não pulou. Ele precisava ouvir a voz de alguém que o lembrasse da sua ligação com a vida, dos laços que tinha com os que o rodeavam. Não havia uma outra voz dizendo para ele pular. E acredito que isso fez toda a diferença.

ÉPOCA – A internet parece tê-lo auxiliado no suicídio em dois momentos: nos sites que ensinavam métodos de tirar a própria vida e nos chats em que ele discutia seu desejo de se suicidar. Na hora do suicídio ele escreveu no chat que estava se suicidando e pediu ajuda porque não suportava o calor das chamas. Neste momento, o que essa voz na internet representou? 

Corso – O que a internet faz é dar suporte a uma idéia. Namorar a idéia do suicídio é uma coisa que muita gente faz, é fantasia comum na adolescência e visitante freqüente dos desesperados. Chegar à beira de se matar também é algo que ocorre muito mais do que se admite publicamente, mesmo com pessoas que estão bem acompanhadas na vida, que possuem vínculos sólidos. Mas poucos chegam a se matar. Na hora, falta uma energia extra. Há uma força vital que nos segura no último momento. Essa força que nos prende ao grupo, às outras pessoas, ao quanto os outros gostam da gente e ao quanto nós gostamos dos outros. Isso tece uma rede, uma teia que nos suporta na vida. Muitas vezes, quando o sangue aparece nos pulsos cortados, as pessoas acordam do seu transe mortífero e pedem ajuda. Para dar esse último passo, se suicidar, é preciso de um desespero, de uma desesperança muito forte ou de alguém que te puxe para baixo.

ÉPOCA – A polícia entendeu que não existem provas de incitamento ao suicídio, portanto não houve crime. O que você acha? 

Corso – Eu acredito que para o Vinícius foi absolutamente decisivo o fato de alguém cortar essa teia que o prendia à vida. Ele brincava com a idéia de morrer como uma saída para as crises de angústia e desespero. Mas tinha laços fortes com a vida que podiam resgatá-lo. Sem aquele último estímulo ele não teria tido coragem para se matar, como não teve das outras vezes. Talvez a polícia tenha se sentido impotente frente ao tamanho da tarefa a fazer. Porque realmente seria muito difícil encontrar e responsabilizar essa gente. Sentiram-se impotentes e chegaram a essa conclusão brilhante. Que o culpado era o suicida.

ÉPOCA – Por que ele se suicidou de uma forma “assistida”? Ele chegou inclusive a botar uma foto das churrasqueiras com fogo na internet. O que significou esse suicídio ao vivo pela internet? 

Corso – Ele é de uma geração que se criou dentro da internet. Essa é a questão que foi subestimada por mim – e eu não posso falar por eles, mas talvez tenha sido subestimada pelos pais também. Com 11 anos ele freqüentava grupos de discussão onde se apresentava tendo 26. E ele passava por 26 anos. Esse menino era superdotado, extraordinariamente inteligente, e cresceu numa família muito estimuladora, intelectualmente rica, com um pai e uma mãe muito cultos. Ele sugou essa cultura rapidamente. O Vinícius herdou do pai a profundidade política, social, e da mãe a perspicácia emocional. Tinha o que poderíamos chamar de excesso de lucidez. Mas sem condições de suportar essa carga por causa da pouca idade. Era um menino que tinha uma capacidade de compreender profundamente o mundo, mas não tinha a consistência emocional para dar conta do que via, do que decodificava. Reduzido a si mesmo, via-se deformado, feio, pequeno. Ele tinha uma hipersensibilidade ao mundo que lhe fazia bastante mal. Como se ele vivesse um pouco o noticiário, o mundo como ele acontece. Era uma caixa de ressonância do mundo.

ÉPOCA – Isso significa que ele era mais afetado pelas grandes tragédias do mundo ou pelas pequenas misérias ao seu redor? 

Corso – Ele sofria com a brutalidade do mundo. Este era um tema caro para ele: sofria vendo as pessoas sendo humilhadas, sofria com a hierarquia. Ele tinha uma compreensão hiperbólica do mundo. Era como se para ele a escravidão não tivesse acabado no Brasil. Ele ficava imaginando como era a vida da empregada, do porteiro. Ele fica tentando imaginar como essa vida era e como eles cabiam nessa vida que ele achava pequena e estreita. E como sofriam por isso.

ÉPOCA – Ao mesmo tempo, ele é descrito por algumas pessoas do colégio como alguém que não se relacionava muito com os outros, alguém que se dava bem com todo mundo e ao mesmo tempo com ninguém, que vivia numa espécie de mundo próprio. 

Corso – Houve várias fases dele. Ele teve dois tratamentos comigo. O primeiro foi iniciado quando ele tinha 11 anos. Ele me procurou por uma certa fragilidade que tinha. Já tinha esse desencaixe, essa precocidade extraordinária. É difícil viver numa sala de aula quando você entende muito o que está acontecendo. Imagina se você fosse adulta e tivesse de voltar para o primeiro ano. Aqueles empurrões e cotoveladas, aquelas maldadezinhas. Ele estava sempre um pouco à frente do seu tempo e isso fazia diferença para os colegas dele. Ele ficou comigo dos 11 aos 13 anos na primeira vez. Fez progressos muito importantes e saiu bem. Nessa época ele se aproximou muito do pai e ficou mais extrovertido. Melhorou também na sala de aula, ficou mais popular, ganhou até um apelido, Pipoca. Eu tinha notícias esparsas dele e ele estava bem. Em 2004 foi um período ótimo, em 2005 não foi tão bom e ele retornou.

ÉPOCA – Desde quando você sabia que havia risco de suicídio e que tipo de providência foi tomada? 

Corso – Eu soube desde o começo. Ele disse na primeira vez que me procurou que havia pensado em se matar. Isso no segundo tratamento. Eu mantive isso comigo até sentir que a situação poderia escapar das minhas mãos. Então eu comuniquei aos pais. E nós combinamos que ele ficaria em internação domiciliar. Nesses casos sempre há alguém com o paciente, ele não fica sozinho em momento algum. Os pais já tinham desconfiança sobre isso, entenderam logo e passaram a não desgrudar dele. Mas enquanto a gente cuidava dele, tinha alguém que puxava ele para baixo. Aí entrou o fator extra, que nós desconhecíamos. Não sabíamos que ele tinha alguém que o incentivava a achar que a vida não vale a pena. Ele havia me dito que entrava na internet para ver formas de suicídio, a gente discutiu muito sobre os suicídios que estavam ocorrendo no Japão. Mas eu não sabia que ele discutia abertamente o valor da sua própria vida na internet.

ÉPOCA – Ele era depressivo? Usava algum tipo de medicação? 

Corso – Não usava. E eu não vejo razão para classificações aqui. Isso não é relevante para essa discussão ou para o público que está lendo a revista.

ÉPOCA – Por que ele dizia que queria se matar? 

Corso – Ele não falava que queria se matar. Ele falava que era impossível viver, que não se sentia com forças para viver, o que é um pouco diferente de ter vontade de morrer. Ele tinha uma vontade de desaparecer, de que algo cessasse a dor constante que ele sentia.

Época - Há quanto tempo ele estava nessa internação domiciliar? 

Corso – Começou dois meses antes do suicídio.

ÉPOCA – Vocês sabiam que havia risco de suicídio, você e a família estavam cuidando dele, mas ao mesmo tempo havia um outro enredo se desenrolando a partir da internet, dentro de um mundo virtual. Como é isso? 

Corso – Este foi o erro, o engano. Subestimar o papel da internet. Eu uso a internet, mas eu não a habito, eu não moro dentro da internet. Tem gente que mora.

ÉPOCA – Ele morava dentro da internet? 

Corso – Ele habitava nela. Não vamos achar que a internet é uma coisa ruim a priori. Ele construiu a obra dele na internet, a troca de músicas que resultou no disco interessante que ele fez foi graças à internet. A internet pode ser extraordinariamente interessante, ela possibilita encontros que não estavam colocados antes. É o paraíso dos solitários, das pessoas tímidas. Tem proporcionado a construção de laços entre pessoas distantes. Agora, por outro lado, a internet possibilita também o contato de outro tipo de coisa que nunca aconteceria sem ela. A internet não criou nenhum tipo de doença mental, todas elas pré-existiam. Mas ela possibilita o incremento de certas morbidades por uma possibilidade de compartilhar e, a partir disso, criar uma identidade. Um exemplo é o que acontece com a anorexia, uma doença gravíssima, muitas meninas morrem disso. Antes da internet, uma não encontrava a outra. Com a internet o que elas conseguem? Trocam idéias sobre a anorexia não no sentido da auto-ajuda, mas da manutenção da patologia. E da glamourização dela. Encontram alguém que as apóia em permanecer nessa atitude doentia, a construir uma identidade a partir dela. Outro exemplo: imagina um sujeito pedófilo numa cidadezinha no interior onde provavelmente ele era o único pedófilo. Antes ele era uma aberração aos olhos da comunidade e dele mesmo. Na medida em que ele consegue compartilhar isso com outras pessoas na internet e descobre que há um monte de gente como ele, isso faz com que tenha coragem de se pensar enquanto grupo. Não como doente, mas como um estilo. A internet possibilita uma série de coisas extraordinárias, mas também uma série de coisas doentias.

ÉPOCA – E como isso funciona no caso do suicídio? 

Corso – A internet tem de tudo, mas ela ainda é muito fraca e medíocre no seu conteúdo. Com exceções, ela é muito tola, não tem profundidade para quase nada. Ela é o livro de areia que o (Jorge Luis) Borges imaginou, mas sem profundidade, onde uma página não tem nada a ver com a outra. Vale lembrar que, no conto, ele ficou horrorizado e abandonou o livro. É isso que não devemos fazer. Um dos problemas da internet é também que a nossa geração não está lá da mesma maneira, não tem uma geração anterior a que está na internet. Ainda não há uma tradição ali dentro, a internet é raramente habitada por pessoas com um pouco mais de maturidade. Os jovens estão muito sós nesse mundo virtual, meio entregues à própria sorte. Então, além de empobrecedor, o ambiente é também mais frágil e mais perigoso pela falta de adultos.

ÉPOCA – E o que podemos fazer? Nós vivemos numa espécie de esquina histórica. Os pais de hoje pertencem à geração que só conheceu a internet depois de adultos. Seus filhos habitam a internet desde a infância. Os pais vêem os filhos dentro do quarto, sentados, sozinhos, digitando no computador, e ficam tranqüilos porque não poderiam estar mais seguros: dentro de casa e sozinhos. Mas naquele momento os filhos estão no mundo, sujeito a pedófilos e perversos de todo o tipo, e sem pai nem mãe. Mesmo os pais que conhecem os riscos estão impotentes porque não dominam os códigos desse mundo virtual. Provavelmente quando essas crianças e adolescentes forem pais, esse gap geracional, pelo menos no sentido da internet, não vai mais existir. Mas hoje, agora, o que podemos fazer? 

Corso – Eu resolvi dar essa entrevista para que se comece uma discussão sobre isso. Não acredito em controle, acho que a internet é incontrolável. É algo como tentar proibir o papel. É inócuo, inútil, estúpido. Mas ela está aí e a gente vai ter de inventar formas para lidar com isso. Acho que o único jeito é a velha teoria de sempre. Se você quer cuidar de seus filhos, fique perto deles, tenha consciência do abismo que separa as gerações na forma de se relacionar com esse meio de comunicação. Procure dialogar com eles sobre o que ocorre também em seu mundo virtual. Para a nossa geração não está ocorrendo nada sério ali, mas para os mais jovens amores, destinos e até a vida e a morte podem estar sendo decididos na internet. Essa diferenciação entre o real e o virtual não é tão radical para eles. Há um portal em que eles transitam, lá onde nós somente vemos uma linha divisória, uma parede. É como a TV. A TV pode ser muito nefasta se ela for a única via de acesso ao conhecimento de uma criança. Mas se ela ficar diluída com a escola, com os pais, ela é um estímulo a mais. Quem vai ficar mais exposto à internet é quem tem menos laços reais com o mundo, quem constrói laços prioritariamente virtuais. O Vinícius estava num momento de muita fragilização com o mundo. Então ele se voltou para a internet. Embora ele também sofresse na internet, nos grupos de discussão. Não era uma vida fácil nem no mundo virtual. Mas a internet é um bom mundo para quem tem problemas com o corpo. O corpo não está ali, ali é só a palavra. Para quem é só corpo a internet não funciona.

ÉPOCA – Por que você acha que alguém faz um site de suicídio, com métodos para tirar a própria vida? É possível construir um perfil desse tipo de pessoa? 

Corso – É gente doente que exerce sua morbidez, seu sadismo. Eu acredito que deve ter algum grau de sinceridade nessa negatividade do mundo. O problema é que eles não sabem com quem estão falando. Não têm consciência da fragilidade das pessoas. Esse é o drama da internet. Acho que nenhum adulto conseguiria chegar para um adolescente e dizer, cara a cara: a vida não vale a pena, te mata. A internet tem um valor moderno importante que é a abolição das diferenças. Todo mundo tem o mesmo peso lá dentro. Então as opiniões mórbidas, idiotas, têm um peso muito grande também. Não há uma hierarquia de informação, vale tudo. Acho que estamos num período inicial da internet, que talvez seja o período mais pobre, onde você pode encontrar uma opinião séria ao lado de grandes besteiras. Para certos medíocres é um paraíso, porque lá é o único lugar em que sua voz é ouvida. Por exemplo, para cada site careta, mal escrito, falando que drogas trazem problemas, você encontra uma centena de depoimentos glamourizando as drogas. Ou seja: você perde de goleada. Talvez a questão seja entrar na internet para dizer o que achamos sobre algumas questões, com uma linguagem e um conteúdo consistente. Precisamos aprender a usar a internet, habitá-la. Talvez a gente tenha de andar nessas ruas escuras. Talvez este seja um movimento necessário. Talvez não dê para esperar pela geração seguinte. Talvez tenhamos de entrar para ajudar quem está lá. A nossa falta de saber técnico de entrar não desqualifica toda a outra sabedoria que a vida nos deu para sair destas ciladas mais banais que a internet coloca. Na verdade os discursos sobre estas coisas são muito bobos, são filosoficamente muito pobres. Você não encontra um (Albert) Camus falando sobre suicídio. Só encontra idiotas falando sobre suicídio. Aliás, a gente poderia perguntar para esses sujeitos: “já que a morte é tudo de bom, por que você não se mata antes?” Acho que essa pessoa faria bem menos falta ao mundo do que o Vinícius.

ÉPOCA – Você diz que subestimou o papel da internet. Mas sabendo o que sabe hoje, se tivesse um paciente exatamente igual ao Vinícius, o que você poderia fazer? 

Corso – Eu acho que um psicanalista, às vezes, tem de andar de mão com o paciente no inferno. Só que eu não sabia da totalidade desse inferno. Acho que se eu soubesse eu teria ido lá junto. Teria vivido nessa comunidade. Era preciso ter entrado, ou eu ou a família dele, nesses sites, nesses chats. Era preciso ter ido atrás dele. Nós achávamos que ele estava bem cuidado. Que naquele momento de crise mais aguda ele estava sob a nossa influência. Mas tinha um inimigo na trincheira que a gente não enxergou.

ÉPOCA – Esse tipo de pessoa manipula que tipo de sentimento num adolescente? 

Corso – De uma forma simplificada, banal e rasteira, a idéia de suicídio é uma idéia de negação do mundo. É fácil, portanto, tentar vender a idéia de aliar o suicídio a uma recusa radical do mundo. E essa recusa radical do mundo é em si um pouco simpática. Desse mundo que está aí fora, que não fui eu que fiz, eu não quero saber. Ele está todo errado. Eu recuso ele em bloco, eu vou-me embora. Dessa idéia inicial, que tem um aspecto até um pouco contestatório, interessante, para um passo mórbido, não há muita distância. É isso que começa a fascinar alguns jovens. E acontece num momento da vida em que para crescer é preciso sair do olhar dos pais. Além disso, não vivemos um bom momento civilizatório. Há uma geração que está se criando sem utopia e sem religiões. É complicado. As religiões dão razões para estar no mundo, critérios do modo correto de fazê-lo, embora o preço seja uma alienação muito grande. As utopias também. Mas a ausência delas pode ser bastante dura para um adolescente. Um adolescente se dá conta da sordidez e da dureza do mundo e praticamente não encontra muitas razões para entrar na arena. Uma psicanalista francesa, Françoise Dolto, falava da adolescência como “complexo da lagosta”, porque estes animais soltam a carapaça para poder crescer e secretar uma nova carapaça. Enquanto isso ocorre eles estão vulneráveis, desprotegidos. O adolescente é mais ou menos assim. Há um momento da vida que para poder crescer a gente perde as defesas momentaneamente até constituir novas. E é nesse momento de enorme vulnerabilidade que este “por que não se mata” é escutado como uma grande sugestão. O que é dito nesses sites é que vale a pena morrer. E o que nos mantêm vivos às vezes é mais tênue do que a gente imagina. O que nos mantêm vivos é uma rede de pessoas que dependem de nós e que a gente depende delas. Uma rede amorosa, afetiva, de compromisso. Essa rede de suicídio é uma outra rede, que diz que não precisa estar aqui. Ela faz um contraponto a este coletivo que diz “viva”. É um coletivo que diz “morra”. O Vinícius precisou de ajuda para se suicidar. E essa voz foi muito sedutora.

ÉPOCA – Você acha que ele gostaria desse CD lançado no mundo real? 

Corso – Eu tenho certeza. Ele tinha toda uma dinâmica de busca de reconhecimento e é isso que o CD significa. Postumamente ele conseguiu o lugar no mundo real pelo qual tanto brigava.

ÉPOCA – Ele deixou o CD como legado? 

Corso – Creio que esse mérito é dos pais dele. O CD não estava organizado. Eu mesmo tinha algumas músicas no meu computador. Foi o pai que organizou o CD e o fez com a ajuda de alguns amigos. Este CD é um re-encontro do pai dele com ele e acho bem corajoso o que ele está fazendo. A resposta mais comum nesses casos é a depressão e o apagamento, o esquecimento do filho. Eu vi tantos casos em que os filhos são cortados das fotos, como se nunca tivessem existido, como se estes pais nunca tivessem passado por isso. Acho que é uma atitude digna, corajosa, bem-vinda para o Vinícius, para os pais, para a música, para todo mundo.

ÉPOCA – Perder um paciente deve ser terrível. É uma sensação de fracasso? 

Corso – É uma sensação completa de fracasso, que coloca em xeque tudo o que a gente pensou e estudou. A gente segue falhando, mais do que gostaria, mais do que aprende a admitir. Então é mais uma derrota. Mas nem todas as derrotas são tão catastróficas como essa. E quando isso acontece a missão não terminou, porque temos que cuidar de quem ficou. A gente está arrasado, mas o jogo não acabou.

ÉPOCA – Como foi viver essa situação? 

Corso – Foi pior depois. Eu tenho um ar-condicionado no cérebro para questões de emergência. Depois é que vem o rebote. Eu tinha de suportar, eu tinha de ajudar os pais. Se eu estava arrasado, imagina como eles estavam. Eles também estavam destruídos, mas numa outra potência. Eu tenho uma filha da idade do Vinícius e consigo me colocar no lugar deles, consigo imaginar o tamanho do rombo que essa morte deve ter feito. E há um grau de responsabilidade nisso. Era eu que estava ali. E eu falhei.

ÉPOCA – Mas há um limite... 

Corso – Sim, há um limite, há uma onipotência. A gente não pode ganhar todas, curar todos. Mas era eu que estava lá quando a coisa não funcionou. E isso é duro. Se os pacientes não são um número, isso é muito duro. O Vinícius era um paciente diferente. Como ele era extraordinariamente inteligente, ele dizia coisas desconcertantes, que nem todas as pessoas conseguem nos dizer. Então fazia uma marca. Era um desafio analisar o Vinícius. Como é que você consegue passar o valor da vida para um sujeito muito inteligente, sem ser piegas? Eram discussões praticamente filosóficas sobre o valor da vida. Eu tenho saudades dele. Durante meses eu pensava no Vinícius todos os dias. Em algum momento do dia me vinha algo que ele tinha falado.

ÉPOCA – Em algum momento deu vontade de desistir de ser analista? 

Corso – Sim. E não só por causa dele. Um analista é um sujeito que tem de ter uma dose extra de resistência à frustração para suportar sua própria impotência. É muito difícil mudar as pessoas. Mesmo quando elas precisam desesperadamente disso.

ÉPOCA – E por que você nunca desistiu? 

Corso – Por que ainda não senti que inventaram algo melhor que a psicanálise. Tem aquela frase do (Winston) Churchill que eu gosto muito, em que ele diz que a democracia é a pior forma de governo excetuando todas as outras. Pois a psicanálise é a pior forma de terapia excetuando todas as outras. Se os nossos resultados são parcos, eles ainda são melhores que todos os outros, são mais humanos. A verdade é que a gente vive num estágio curioso da civilização. A gente tem conquistas tecnológicas extraordinárias, avanços, mas as ciências que cuidam do homem são muito precárias nas suas ferramentas de análise, de resolução de problemas no âmbito pessoal.

ÉPOCA – Mudou seu jeito de lidar com a internet? 

Corso – Mudou. Eu tenho tentado aprender com as minhas filhas e com meu genro a entrar mais, saber como é esse mundo e como ele funciona. Mudou muita coisa. Eu tenho de conviver com um buraco dentro de mim, como com qualquer perda que a gente tem. Os psicanalistas apanham bastante. E algumas cicatrizes são para sempre. 



Foto: Silvio Ávila/ÉPOCA

domingo, 12 de julho de 2015

Jovens tatuam ponto e vírgula para representar luta pela saúde mental


Projeto de prevenção ao suicídio surgiu a partir de um movimento nas redes sociais



RIO - Para além da indicação de uma pausa, o ponto e vírgula ganhou valor simbólico para muitos jovens: a tatuagem da pontuação representa agora a luta pela saúde mental e a importância da prevenção do suicídio.


O projeto, que surgiu a partir de um movimento de mídia social em 2013 com o objetivo de “encorajar, amar e inspirar”, é um “movimento dedicado à apresentação de esperança e amor para aqueles que estão lutando com depressão, suicídio, dependência, e auto-lesão”.
Quando alguém usa o ponto e vírgula, é por que poderia ter escolhido acabar com a frase, mas não quis. Este é o simbolismo. De acordo com os criadores do projeto, “o autor é você e a frase é a sua vida”.

Originalmente criado como um dia em que as pessoas foram incentivadas a desenhar um ponto e vírgula em seus corpos e fotografá-lo, ele rapidamente se transformou em algo maior e mais permanente. Atualmente, pessoas de todo o mundo estão tatuando a marca como um lembrete de sua luta, vitória e sobrevivência.

“Se você vê a tatuagem de alguém que você está interessado, é um jogo justo para iniciar uma conversa com alguém que você não conhece”, acrescenta Jeremy Jaramillo, uma das criadoras do projeto. “Ele dá uma grande oportunidade para conversar. Tatuagens são interessantes - desenhos que colocamos em nossos corpos que são importantes para nós.”



Matéria do Jornal "O Globo" em 08/06/2015