domingo, 26 de junho de 2016

Automutilação -

"Cortar na própria carne não é uma metáfora para muitos adolescentes ..."


      Outro assunto muito importante quando se fala em sofrimento é a automutilação, ou cutting.   A automutilação pode não estar associada ao desejo de suicídio, mas com certeza é um importante sinal de que algo não está bem, pois trata-se de uma conduta autodestrutiva.

    De acordo com o PRO-AMITI, do Laboratório Integrado dos Transtornos de Impulso (http://www.proamiti.com.br/automutilacao):
   
A automutilação pode ser definida como qualquer comportamento intencional envolvendo agressão direta ao próprio corpo sem intenção consciente de suicídio. Esse comportamento é repetitivo, chegando, em alguns casos, a mais de 100 vezes em um período de 12 meses. As formas mais recorrentes de automutilação são cortar a própria pele, bater em si mesmo e queimar-se e em geral as áreas onde são produzidos os ferimentos são os braços, pernas, abdômen e áreas expostas.

Critérios diagnósticos segundo o DSM-5

A. No último ano, o individuo se engajou, em cinco ou mais dias, em dano intencional autoinflingido à superfície do seu corpo, provavelmente induzindo sangramento, contusão ou dor (por exemplo: cortar, queimar, fincar, bater, esfregar excessivamente), com a expectativa de que a lesão levasse somente a um dano físico menor ou moderado (por exemplo, não há intensão suicida).
Nota: A ausência de intenção suicida foi declarada pelo individuo ou pode ser inferida por seu engajamento repetido em um comportamento que ele sabe, ou aprendeu, que provavelmente não resultará em morte

B. O indivíduo se engaja em comportamentos de autolesão com uma ou mais das seguintes expectativas:
1. Obter alívio de um estado de sentimento ou de cognição negativos.
2. Resolver uma dificuldade interpessoal.
3. Induzir um estado de sentimento positivo.
Nota: O alívio ou resposta desejado são experimentados durante ou logo após a autolesão, e o indivíduo pode exibir padrões de comportamento que sugerem uma dependência em repetidamente se envolver neles.

C. A autolesão intencional está associada a pelo menos um dos seguintes casos:
1. Dificuldades interpessoais ou sentimentos ou pensamentos negativos, tais como depressão, ansiedade, tensão, raiva, angústia generalizada ou autocrítica, ocorrendo o período imediatamente anterior ao ato de autolesão.
2. Antes do engajamento no ato, m período de preocupação com o comportamento pretendido que é difícil de controlar.
3. Pensar na autolesão que ocorre frequentemente, mesmo quando não é praticada.

D. O comportamento não é socialmente aprovado (por exemplo: piercing corporal, tatuagem, parte de um ritual religioso ou cultural) e não está restrito a arrancar carca de feridas ou roer as unhas.

E. O comportamento ou suas consequências causam sofrimento clinicamente significativo ou interferência no funcionamento interpessoal, acadêmico ou em outras áreas importantes do funcionamento.


F. O comportamento não ocorre exclusivamente durante episódios psicóticos, delirium, intoxicação por substancias ou abstinência de substancia. Em indivíduos com um transtorno do neurodesenvolvimento, o comportamento não faz parte de um padrão de estereotipias repetitivas. O comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno mental ou condição médica (por exemplo, transtorno psicótico, transtorno do espectro autista, deficiência mental, síndrome de Lesch-Nyhan, transtorno do movimento estereotipado com autolesão, tricotilomania (transtorno de arrancar cabelo, Hair-pulling), transtorno de escoriação (skin-picking).


      Quem busca refúgio na automutilação, de acordo com pesquisas, pode estar tentando:
  • Reduzir a tensão interna, ao transformar a dor emocional em dor física;
  • Distrair-se de situações intoleráveis;
  • Comunicar angústia ou outros sentimentos difíceis;
  • Encontrar uma forma de autopunição.

Matéria da Revista Marie Claire também aborda o tema:

Estimuladas por perfis de jovens depressivas que se machucam e postam as fotos dos cortes nas redes sociais, adolescentes do mundo todo se trancam nos banheiros e repetem a cena: talham a própria pele na tentativa de aplacar uma dor sentimental.


“Para essas meninas, a automutilação funciona como um tipo de ‘automedicação’, uma forma de localizar a angústia difusa em uma parte do corpo sob a forma de dor”, afirma Dunker sobre o cutting, esse fenômeno acentuadamente feminino. “Há também um prazer estético que se obtém pelo olhar do sangue que escorre.”

"A automutilação apareceu pela primeira vez no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Sociedade Americana de Psiquiatria em 2000 e ainda não é vista como um distúrbio isolado. “Esse comportamento é muito influenciado socialmente”, concluiu a psicóloga e pesquisadora canadense Nancy Heath em um estudo de 2009 feito com jovens, a maioria meninas universitárias, que se cortavam em seu país."



#CANSADA DE TUDO#SOFRIMENTO#VIDA DIFICIL
Eu me corto por isso, por não aguentar as pessoas falando de mim, por ser fraca o bastante, por não conseguir não ligar pra isso, meus pulsos estão marcados e a cada dia vão ficar com mais marcas por causa de vocês, por causa dessa sociedade cruel que tem hoje em dia, eu tento parar de me cortar mas você acha que eu consigo? que eu olho pra lamina e digo “não”? A unica coisa que vem na minha cabeça é “corta,vai melhorar, essa dor vai desaparecer” então eu vou lá e me corto, vejo o sangue escorrendo pela minha mão, sabendo que ali vai se formar mais uma cicatriz, sabendo que me cortando não vai adiantar de nada. Mas sabe o que é olhar pra lamina e ela tipo falar “faz isso, eu sou sua amiga to aqui pra sempre, nunca te abandonei como elas, eu não te julgo como eles”? não? pois é isso que eu ouço quando olho pra lamina, no começo eu praticava a mia só que eu não conseguia mais, meu corpo não deixava mais, é como se ele me alerta-se “não faz isso” eu parei com a mia mas eu comecei a me cortar, a marca meus pulsos, a me mutilar num jeito de fazer com q as pessoas vissem e fossem me ajudar de alguma maneira, que me notasse que meus sorrisos não são verdadeiros que eles não mostram a minha dor, mas que meus olhos me entregam, mas quem nota isso? ninguém, ninguém se importa se meus pulsos estão cheios de cicatrizes, ninguém nota que eu to bem mais magra, que eu não paro de usar casacos, que eu não sorrio como antes, que meus olhos vivem inchados, vermelhos e que de vez em quando derramo uma lagrima, ninguém nota isso porque eu sou invisível, so apenas um projeto de ser como meu pai disse “eu nunca devia ter nascido” sabe oque é ouvir isso do seu proprio pai? sabe oque é voce ouvir da boca dos seus pais que voce é um nada? que voce devia ter morrido com o remedio que ele deu a sua mãe? que independente de DNA voce NUNCA sera filha dele? ou sabendo que ele mora na rua de trás a sua e te ignora? mas tem gente que acha besteira eu descontar isso nos meus pulsos, sabe é facil falar “tem gente que passa por coisas piores que voce e não faz isso” MAS É DIFICIL ENTENDER QUE EU NÃO SOU ESSAS PESSOAS? QUE EU NÃO SOU FORTE? sim é dificil vê que aquela menininha doida sofre isso, é dificil saber que aquela menininha ja foi abusada, ja sofreu demais. Muitos acham que falrr isso é pra que tenham PENA, mas quem disse que eu quero pena? ja basta pena pra mim, ja basta eu ser excluida de tudo, sabe oque é ouvir da boca da sua melhor amiga “vê se da proxima vez acerta a veia e morre de uma vez”? sabe oque é chegar em todo lugar e ver as pessoas falando de voce?cochichos, fofocas, pessoas te chamando de loca por fazer isso ou ate mesmo dizendo “pq voce não morre logo? ninguém gosta de voce” e isso tudo sai da boca de quem voce mais ama, mas quem se importa se um dia eu morre, sera que quando isso acontecer vão dizer “ela não demonstrava nada” “sempre tava com um sorriso no rosto” “porque não notamos isso”? os meus gritos de socorro são silenciosos, abafados pelos casacos, só compartilhados com a lamina minha fiel amiga, a unica que nunca me abandono, todo dia sorrisos falsos se formam na minha boca mas ninguém nota isso porque? porque eu sou invisivel, insignificante pra tudo e pra todos."
- Texto encontrado na Internet

Principais fatores de proteção:
- Resiliência
- Apoio da família e de amigos.


domingo, 19 de junho de 2016

I CONGRESSO DA ABEPS

ABEPS - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS E PREVENÇÃO EM SUICÍDIO

Realizou seu I Congresso Brasileiro em Belo Horizonte/MG de 16 a 18 de junho. 

Estivemos lá com três trabalhos e pudemos assistir a diversas palestras e apresentações de trabalhos relacionados ao tema.






Pensamentos

Existem sites de poesias e frases, onde as pessoas podem compartilhar escritos de autores famosos ou de sua própria autoria. Pesquisando aleatoriamente sobre suicídio, encontrei alguns pensamentos. Talvez eles sejam apenas ficcionais, talvez sejam pedidos de ajuda. De qualquer forma, nos ajudam a compreender o sofrimento. São textos públicos, porém mesmo assim não citarei a autoria.

"Você implora por ajuda e nada, nem ninguém quer te ajudar. O suicídio começa por dentro. Você não tem mais vontade de sair com os amigos, seus pais se perguntam o que houve de errado, se eles são os culpados pela sua terrível solidão. Seus olhos ficam cada vez mais pesados, e teu coração bate cada vez mais lento. Tic tac, socorro, tic tac. Sua respiração vai falhando, sua garganta vai dando aquele nó e um filme passa por sua cabeça. Sua adolescência cheia de dores, brigas, futilidades, desamores. E cada momento é como uma facada no seu coração […] O suicídio começa por dentro."

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"O suicídio não acontece quando alguém corta os pulsos ou salta de uma janela com uma corda ao redor do pescoço. O verdadeiro suicídio acontece quando acordamos todos os dias do mesmo jeito que fomos dormir, quando o coração vazio continua vazio, quando a alma continua morta."

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"O suicídio é somente a confirmação da morte, pois já não havia mais vida. Em nosso mundo, nesse triste mundo, são poucos os que ainda estão vivos; a maioria já morreu e somente anda sobre a terra."

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"Chega a hora em que a dor te faz cogitar o suicídio, mais ai eu penso: para que me matar se tem pessoas que se matariam por mim? – então ai eu descubro que a melhor forma de conviver com a dor é aceitando-a."

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"Meu suicídio diário não é uma forma de morrer. É uma tentativa desesperada de encontrar essa vida, testar minha capacidade de quase ir e voltar, descobrir se eu mereço estar aqui e se existe mesmo um deus. Afinal, ele concorda ou não com a minha maneira de encarar as coisas? Por que não me castiga por ser tão estupidamente desapegada? É minha necessidade de viver que me mata."

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A morte me chama pra jantar
Em forma de suicídio diz que vem pra me buscar
Com flores no caixão, 
Um terço enrolado na mão
Me despeço deste mundo de muito preço e poucos valores
De muito ódio e poucos amores

Uma memória não deixarei, 
Nem mesmo nas histórias estarei.
Pois quem escolherá a morte
Talvez não seja um azarado e sim um cara de sorte."

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Suicídio frustrado

Quando acordei no hospital
Senti um grande pesar
Onde foi que eu errei
Senti vergonha também

Eu queria muito tentar de novo 
Mas me encontrava amarrada
Eu queria sair correndo
Mas estava muito sedada

Quando meus pais me olharam
Senti muito por fazê-los sofrer
Já alguns que se diziam amigos
Faziam-me ódio sentir

Os julgamentos me afetaram
Piorou minha agonia
Não via a hora de sair de lá
Para acabar de vez com minha dor

Frustração, vergonha
Desespero, raiva
Tubos de ar, cordas nos punhos
E extremamente sedada

Creio que isso seja pior que a morte
É o castigo por ter sido covarde?
Por ter sido egoísta?
Essa é a dor de um suicídio frustrado.


Suicídio 

Quis fugir daqui
A dor era dilacerante
um corte inesperado
ah! amor, como pude?
por um instante pensar que ar não era preciso...
Deslumbrada, desvairada
e profundamente corroída 
Cheguei ao último instante!
Não! não era a minha morte 
que eu almejava
Era por fim na dor que me dilacerava.

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Obs: caso algum autor queira sua identificação no post ou que seu texto seja excluído, favor entrar em contato. 









domingo, 12 de junho de 2016

Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5,

 transformou numa “anormalidade” ser “normal”

ELIANE BRUM

20/05/2013


A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”. 

A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro. 

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?  

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável. 

O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.  
Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis". 

A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.  

Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.

Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.

A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.

A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.

Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes. 

Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios. 

Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes. 

Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo. 

E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida. 


domingo, 5 de junho de 2016

"Por outro lado, é interessante observar, como nos aponta Menninger (1965), que um ato concreto como uma  mutilação pode trazer paz, sendo a autodestruição local uma forma de evitar uma autodestruição maior. Estas ações podem estar vinculadas a uma necessidade de punição, como expiação de culpa. A automutilação pode ser também uma forma do sujeito se punir antes que alguém o faça e com isso conseguir uma indulgência. Sacrificando-se a parte, salva-se o todo".

- Maria Julia Kovács in "A morte em vida"
Livro: Vida e Morte: Laços da Existência