quarta-feira, 20 de maio de 2015

Quem cala, consente

Quem cala, consente 16/05/2015 | 13h31

Revista "MIX" mergulha em um tema tratado à meia-luz: o suicídio

Obra Viver É a Melhor Opção — A Prevenção do Suicídio no Brasil e no Mundo foi lançada pelo jornalista André Trigueiro na última edição da Feira do Livro de Santa Maria



"Há sempre como interferir positivamente em algum elo da cadeia beneficiando todo o sistema". Lida fora de contexto, a frase do jornalista André Trigueiro pode ser interpretada das mais variadas formas. Mas, nesse caso, ela trata da importância de que cada um faça sua parte para que se retire o manto de silêncio que encobre um tema ainda hoje tratado à meia-luz.

Reconhecido e premiado por sua atuação no jornalismo ambiental, atualmente, Trigueiro se coloca à frente de outro importante debate. Desde 1999, o escritor se dedica à pesquisa sobre suicídio. Esse, inclusive, foi o principal motivo da vinda dele a Santa Maria, onde participou da 42ª edição da Feira do Livro. O jornalista, de 48 anos, lançou seu mais novo livro: Viver É a Melhor Opção — A Prevenção do Suicídio no Brasil e no Mundo. Além de apresentar alternativas para que se combata os mais 800 mil casos de autoextermínio registrados anualmente em todo o planeta, a obra demonstra a urgência de quebrar esse silêncio para que, assim, a sociedade reconheça o tema como um problema a ser enfrentado.

As mortes autoinfligidas são quase sempre atos doentios, sem qualquer glamour ou resquício de heroísmo. Elas abalam e multiplicam o sofrimento dos que ficam. E esse drama, por mais distante que pareça, é considerado uma questão de saúde pública no Brasil e no mundo. Para se ter uma ideia da dimensão do impacto, basta uma olhada rápida no primeiro Relatório Global para Prevenção do Suicídio. O documento, divulgado em setembro do ano passado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), apresenta dados estarrecedores sobre o assunto. São 2,2 mil casos consumados por dia, um cada 40 segundos, representando 1,4% de todas as mortes no mundo. Em 2012, 803,9 mil pessoas cometeram suicídio. O número é quase o dobro dos registros oficiais de óbitos por homicídio ou em conflitos armados, que fizeram 437 mil vítimas no mesmo período.

Mesmo sendo uma pessoa bem informada e atualizada, talvez o leitor esteja se sentindo incomodado com o fato de ignorar esses dados. Mas há uma explicação. O suicídio é tabu e, por isso, se mantém-se distante do radar curioso da sociedade. Com o temor de incentivar suicidas em potencial, a imprensa não destina o devido espaço ao problema. E, assim, jogado para baixo do tapete, perpetua-se o nocivo estigma que rodeia o tema.

Como afirma Trigueiro em seu livro, "do ponto de vista científico, a maioria absoluta dos casos, aproximadamente 90%, é ligada a patologias de ordem mental diagnosticáveis e tratáveis". O cálculo é simples: se de cada 10 casos, nove são preveníveis, significa que há muito o que se fazer para que essas vidas não sejam perdidas. Para psicólogos, psiquiatras e pesquisadores, é justamente com a informação que se faz a prevenção.

"O suicídio não pode ficar escondido. Falar sobre suicídio é uma questão importante, como foi importante falar sobre a Aids. Foi enfrentando o tabu e o preconceito que se abriu caminho para um modelo de atendimento eficiente ao paciente soropositivo em todo o mundo, inclusive no Brasi" afirma o psiquiatra Carlos Felipe D'Oliveira, um dos mais respeitados suicidólogos do país, em entrevista a Trigueiro. 

Rompemos o silêncio e mergulhamos nessa complexa e devastadora realidade. Afinal, como alertam os especialistas consultados pela reportagem, não há motivos plausíveis para que avalizemos novos casos de autoextermínio com o nosso silêncio. Quem cala consente. E como disse o dramaturgo Millôr Fernandes, "morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois".
90% dos casos são evitáveis
Ao longo dos anos, construiu-se a certeza de que que qualquer abordagem menos cuidadosa sobre suicídio poderia precipitar novos casos — especialmente, em pessoas mais vulneráveis. Esse fenômeno recebeu o nome de mimetismo, processo que serve de inspiração para a repetição do ato. Na história moderna, por exemplo, a divulgação da morte da atriz Marilyn Monroe — reportada como suicídio — foi apontada como determinante para o aumento em 12% na taxa de casos nos Estados Unidos, em agosto de 1962.
Mas como Trigueiro faz questão de ressaltar em seu livro, não é mais possível que sejamos reféns da falta de informação. "Em nome da prudência, elimina-se o assunto do noticiário, fazendo como se não existisse", afirma o pesquisador. 
Para especialistas, o maior prejuízo de não se tocar no assunto é o de não informar, com embasamento científico, que 90% dos suicídios são evitáveis. Ou seja, da mesma forma que o amplo debate foi fundamental para que fossem traçadas estratégias de prevenção e redução de danos para males como Aids, tabagismo, câncer de mama e tantos outros, será também para o suicídio. Como concluiu o estudo feito pela OMS, é falsa a premissa, amplamente disseminada, de que não há o que fazer quando alguém deseja se matar.
"O silêncio em torno do assunto alimenta a passividade, quando o momento deveria ser de ação", afirma Trigueiro em seu livro.
17% dos brasileiros já pensou em suicídio
A prevenção do suicídio enquanto movimento articulado teve origem em Londres, onde, em 1906, foi criado o Exército da Salvação. O ponto de partida, com maior comprometimento dos governos, no entanto, foi registrado somente em 1996, com a publicação pela ONU do documento Prevenção do Suicídio: Diretrizes para a Formulação e a Implementação de Estratégias Nacionais. No mesmo ano, a OMS passou a monitorar os suicídios e as tentativas, além de chamar a atenção para a importância da implantação de políticas públicas e medidas de prevenção.
Seguindo diretrizes mundiais, o Ministério da Saúde lançou, em 2005, a Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio. Mas, ao que parece, as décadas de omissão por parte do Estado contribuíram para o emergencial contexto atual. Em número absolutos, o país ocupa a 8ª posição no ranking mundial, com 11.821 mortes por suicídio em 2012. Para se ter uma ideia, é quase o mesmo número de portadores do vírus HIV no mesmo período (11.826). Isso equivale a uma média de 32 suicídios/dia no Brasil.
A ideia de que o país é uma nação alegre perde ainda mais força ao olharmos para a cartilha publicada, em 2014, em uma parceria entre Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e Conselho Nacional de Medicina (CNM). Conforme o documento, 17% da população brasileira já pensou em suicídio, 5% já planejou e 3% já tentou.
As diferentes causas
De acordo com dados da OMS, para cada pessoa que consegue se matar, mais de 20 tentam, sem sucesso, uma ou mais vezes. Isso significa que há uma tentativa a cada dois segundos em todo o mundo, ou que pelo menos 16 milhões de tentativas são registradas por ano. Mas o que leva uma pessoa a esse ato extremo?
Para o suicidólogo Carlos Felipe D'Oliveira, "o suicídio, na verdade, não tem a ver com a morte, mas com a vida, no sentido de que as pessoas querem ter uma vida agradável. Ninguém suporta a dor contínua". No livro Viver É a Melhor Opção — A Prevenção do Suicídio no Brasil e no Mundo, o jornalista André Trigueiro afirma que "o comportamento suicida é um fenômeno complexo causado por vários fatores inter-relacionados: pessoais, sociais, psicológicos, culturais, biológicos e ambientais".
— É sempre um pedido de socorro. Ao contrário do se diz, se uma pessoa fala em suicídio, acredite, escute, sirva de testemunho e apoio para o drama que a envolve. Quando uma pessoa pensa que a morte é uma saída para sua dor, é por que essa é a alternativa última, o limite — complementa Marta Conte.
Álcool e suicídio lado a lado
No livro O Suicídio, o francês Émile Durkheim (1858-1917), considerado o pai da sociologia, afirma que a decisão de se matar teria sempre um fundamento social. Ela seria a expressão individual de um fenômeno coletivo que, sustentada por um conjunto de fatores, faz com que algumas pessoas tenham uma predisposição a interromper a própria existência.
Não há respostas fáceis ou conclusivas para a questão. Em vez de voltar as atenções a uma causa específica, o mais correto é atentar aos fatores de risco. Segundo um manual publicado em parceria pelo Ministério da Saúde, pela Organização Pan-Americana da Saúde e a Unicamp, transtornos mentais (especialmente a depressão), abalos psicológicos (como perdas recentes de entes queridos), e restrições físicas (como doenças incapacitantes) são importantes fatores de risco.
Outra informação reveladora foi constatada em uma pesquisa realizada pelo suicidólogo e consultor da OMS José Manoel Bertole. A partir da análise de 31 artigos científicos publicados entre 1959 e 2001, de onde compilou 15.629 casos consumados, concluiu que 90% dos casos podem estar associados a psicopatologias diagnosticáveis e tratáveis. É consenso entre pesquisadores que sofrimentos psíquicos e abuso de drogas acompanham suicidas em potencial. Estima-se que cerca de 50% dos portadores de transtorno bipolar tentam suicídio ao menos uma vez na vida, enquanto 15% o cometem. A OMS afirma ainda que, entre 15% e 25% dos casos de suicídio estariam relacionados com o alcoolismo, doença que atinge cerca de 11,2% da população brasileira."O principal fator de risco é a primeira tentativa de suicídio, ou seja, quem tentou se matar uma vez precisa de ajuda, porque a probabilidade de tentar novamente é alta", afirma Trigueiro.
Falta assistência
Um dos grandes problemas para a questão do suicídio no Brasil está relacionado à falta de assistência habilitada para acolher quem tenta tal ato. A psicóloga Marta Conte explica que a prevenção pode ser classificada em termos universais, seletivos e específicos. A universal visa reduzir a incidência de novos casos por meio de ações educativas para toda a comunidade. A se seletiva concentra em grupos expostos a situações de risco: pessoas em vulnerabilidade social, que consomem álcool ou outras drogas de forma prejudicial, ou em sofrimento com outros transtornos mentais, com doenças graves e limitantes e dores crônicas, entre outros. Já a específica deve ser direcionada a pessoas que manifestam desejo ou idealização suicida.
— Seria muito razoável construir, de forma intersetorial, uma "Linha de Cuidado em Saúde", sob a perspectiva da saúde coletiva, que inclua um conjunto de ações que fossem desde as habilidades na abordagem da crise e as ações de acompanhamento pós-crise. Envolveria a comunidade e os recursos governamentais e não-governamentais, até a superação da situação — comenta a psicóloga.
Essa estratégia, conforme a pesquisadora, exige, frequentemente, observação, intervenção e ações sociais nos ambientes que estariam levando a pessoa, jovem ou idosa, a desejar se matar.
— Ela exige ainda uma atenção integral à sua saúde, tendo em vista que as tentativas de suicídio frequentemente estão associadas a enfermidades físicas e mentais, problemas familiares, à perda de autonomia e a problemas socioeconômicos — completa.
Limitar acesso aos meios pode salvar vidas
Ampliação da cobertura da Atenção Básica para 100% da população, fortalecimento de redes de apoio e proteção no município com auxílio de ações integradas intersetoriais (educação, saúde, comunicação, segurança, cultura, habitação, esporte e lazer, entre outras) foram algumas das medidas adotadas por municípios gaúchos que conseguiram reverter os índices de suicídio. Outro forte aliado nessa batalha pela vida, segundo a socióloga Marta Conte, é o que ela chama de "aquecimento das relações sociais".
— Isso se faz com estímulo à solidariedade, resgate de valores éticos e ampliação do espírito que contempla o coletivo acima dos interesses individuais e narcisistas, ofertando lugares sociais tanto para os jovens quanto para os idosos — explica a psicóloga.
Além das iniciativas elencadas pela pesquisadora, a OMS destaca uma série de ações importantes que, dependendo da região, podem ser fundamentais para a prevenção do suicídio. Entre elas, destaca-se a restrição dos meios comumente empregados para consumar os atos. "A restrição dos meios, com a consequente redução do número de casos, revela um comportamento curioso: entre os que desejam se matar, parece numeroso um contingente que não deseja fazê-lo de qualquer maneira, empregando qualquer método. Ao se restringir o meio considerado o mais adequado, a empreitada torna-se mais difícil ou mesmo impossível", afirma Trigueiro em seu livro.
Dificultar a aquisição de pesticidas, restringir licenças para porte ou uso de armas de fogo, além de limitar o acesso a pontes e edifícios visados, podem fazer a diferença na hora de salvar uma vida. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Santa Maria sabe bem o significado dessas iniciativas. Um levantamento sobre o número de tentativas de suicídio na Ponte Sobre o Vale do Menino Deus, na BR-158, entre 2001 e 2005, registrou 69 casos. Em apenas cinco, a pessoa conseguiu consumar o fato. A maioria é salva pelos policiais, que já têm estratégias para impedir esse tipo de tragédia.
— Quando percebemos um pedestre caminhando pelas proximidades do posto, ele é abordado e tem a passagem a pé proibida. Quando existe a suspeita de que a pessoa possa cometer algo nesse sentido, entramos em contato com algum familiar. Também há uma orientação para que a encaminhemos ao Husm — explica Marcelo Ramos da Silva, chefe da 9ª Delegacia da Polícia Rodoviária Federal.
Husm realiza ações voltadas à prevenção
Preocupados com a situação em Santa Maria e região, um grupo de profissionais do Husm resolveu enfrentar o problema. Desde junho do ano passado, representantes do Ambulatório de Transtornos do Humor (ATH) e da Associação de Familiares, Amigos e Bipolares de Santa Maria (AFAB), coordenados pela enfermeira Vergínia Rossato e pela psiquiatra Martha Helena Noal, vêm realizando uma série de ações voltadas à prevenção do suicídio.
Conforme Vergínia, responsável pelo Núcleo de Vigilância Epidemiológica Hospitalar (NVEH) do hospital, os números demonstram a seriedade da situação na região. Dos diferentes tipos de violência autoinflingida, as notificações de casos de tentativa de suicídio são as que detêm a taxas mais elevadas. Ela explica que de um total de 299 notificações em 2014, 165 foram tentativas de suicídio, sendo 96 casos entre as mulheres e 69 entre os homens.
— A epidemiologia mostra as situações que devem ser atacadas. Nossas ações foram pautadas nos resultados, para que pudéssemos fazer a divulgação desses dados e, com isso, despertar uma consciência nas pessoas para que ajudem umas as outras, percebendo situações que devem ser encaminhadas — explica Vergínia.
A partir do 1º Encontro Regional Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio, que contou com a participação de 168 profissionais da saúde de Santa Maria e outras seis cidades da região, foram realizadas outras oito intervenções de capacitação — seminários, supervisões e rodas de conversas voltadas à sensibilização e desenvolvimento de habilidades na prevenção de suicídio — em diferentes órgãos como postos de atenção básica e Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
— Em cada fala, em cada abordagem, havia pessoas assistindo e que nos procuravam depois para pedir orientações sobre o que poderia ser feito em determinada situação. A prevenção passa por poder enxergar mais — conta Vergínia.
Além desse trabalho de capacitação, a enfermeira adianta que o grupo e a gestão do hospital estão pensando em outros mecanismos que possam auxiliar a população a buscar ajuda. A ideia é que seja criado um canal, por telefone ou no próprio site do Husm, no qual a comunidade encontre com mais facilidade um acolhimento de qualidade.
RS lidera taxa de suicídios
Entre os Estados com melhores indicadores sociais do país, o Rio Grande do Sul se destaca também num contexto sem motivos para comemoração. O Estado é recordista nacional em taxas de suicídio. Em números absolutos, ocupamos a segunda posição do ranking, com 11.977 casos entre 2002 e 2012. Isso representa um crescimento de 14% de casos em uma década. Mas, se forem considerados apenas casos registrados em 2012, estamos no topo do ranking com 10,9 casos por 100 mil habitantes, seguido por Santa Catarina (8,6) e Mato Grosso do Sul (8,4). Especialistas acreditam que a influência alemã e italiana na colonização deve ser levada em consideração na interpretação do fenômeno. Nessas culturas, há um perfil mais exigente, que torna a cobrança de resultados maior. Talvez eles encarem insucessos como fracassos pessoais, o que pode levar a uma maior vulnerabilidade ao comportamento suicida.
A psicóloga Marta Conte explica que cada caso tem sua singularidade e, entre as diferentes razões ligadas ao suicídio, pode estar a depressão decorrente do uso de agrotóxicos.
Nos anos 1990, uma pesquisa da UFRGS levantou uma hipótese que associava os casos registrados no Estado ao uso de agrotóxicos organofosforados nas plantações de fumo. O debate sobre a questão fez com que até um projeto de lei tentando banir o uso desse tipo de produto fosse encaminhado ao Congresso. A proposta está parada desde 2011.
A preocupação levou a Secretaria de Saúde a lançar, em 2006, um projeto piloto envolvendo Santa Cruz do Sul, Candelária, Venâncio Aires e São Lourenço do Sul. A rede intersetorial envolveu entidades como Centro de Valorização da Vida (CVV), Emater, Unisc e diversos órgãos da área da saúde e segurança pública. Entre as atividades realizadas, destacam-se a capacitação de agentes comunitários de saúde, apoio aos sobreviventes e às famílias, bem como a criação de rede de apoio envolvendo escolas.
Combate à vingança pornô
Ser jovem no mundo de hoje, definitivamente, não é fácil. Além da perturbação metabólica e psicológica inerente ao amadurecimento humano, há uma série de questões existenciais que tornam o desabrochar algo angustiante.
Da falta de habilidade para lidar com certos problemas à preocupação em arranjar um emprego em um mercado de trabalho amplamente modificado por novas tecnologias e insurgentes modelos de negócio, passando por casos extremos, tudo pode descambar para resultados trágicos.
Não são raros os casos de jovens e adolescentes que cometeram suicídio após sofrerem com a exposição involuntária da intimidade na internet. O combate àproliferação da chamada vingança pornô, por exemplo, está relacionado com as orientações da OMS sobre prevenção. Por isso, a lei popularmente conhecida como Lei Carolina Dieckman, que entrou em vigor em 2013, tornou-se um importante instrumento legal para coibir e punir esse tipo de crime.
Conforme a OMS, na faixa etária entre 15 e 29 anos, o autoextermínio corresponde a 8,5% das mortes em todo o mundo. Roraima detém o incômodo posto de campeã nacional nesta faixa etária com 12,9 casos por 100 mil habitantes. O cenário é tão recorrente no Brasil e no mundo que há sites, blogs e páginas em redes sociais que ensinam as melhores técnicas e ferramentas para que crianças e adolescentes tirem a própria vida. Em agosto de 2006, um adolescente de 16 anos, morador de Porto Alegre, teve o suicídio assistido e incentivado pela internet, naquele que se caracterizou como o primeiro caso conhecido do país.
— Dados mostram que, a cada suicídio adulto, há de 10 a 20 tentativas que não acabaram em morte. No caso de crianças, são estimadas 300 tentativas para um suicídio consumado, seja porque elas usam método pouco letal, seja por dificuldade de acesso a instrumentos — afirma a psicóloga do Hospital Sanatório Partenon Marta Conte.
"Não pode achar que é bobagem"
A psicóloga Marta Conte ressalta, novamente, que, "quanto mais proibido e silenciado o tema do suicídio mais sintomas de passagens ao ato pode-se esperar". No caso de crianças e adolescentes, a situação é ainda pior. Segundo ela, ninguém fala sobre o assunto, apesar de estudos mostrarem que 90% dos jovens atendidos em emergência psiquiátrica chegam lá após tentativas de se matar.
— Muitas são reincidentes: já tentaram se matar outra vez e, machucados, passaram por um clínico geral que os liberou em seguida — alerta.
Mas como identificar um comportamento suicida? Especialistas afirmam que é preciso prestar atenção a qualquer sinal que a criança ou o adolescente demonstrem sobre a vontade de tirar a própria vida. Além de comunicar verbalmente o objetivo de se matar, ela pode apresentar sinais como tristeza prolongada, mudança brusca de comportamento, agressividade e intolerância.
O suicidólogo Carlos Felipe D'Oliveira orienta que "a primeira coisa a fazer é considerar que há um risco. Não pode achar que é bobagem, coisa momentânea ou feita para chamar atenção. O suicídio tem um aspecto importante, que é a comunicação. Se a pessoa está dizendo que tem um tipo de sofrimento e que não encontra saída, é preciso ficar atento e procurar um serviço de saúde mental".
CVV, o amigo das horas incertas
De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), por mais planejado que seja, o suicídio parte de um ato geralmente motivado por eventos negativos. Esse impulso é transitório e tem duração de alguns minutos ou horas. Ou seja, acolher uma pessoa durante a crise pode interromper o impulso suicida, evitando a perda daquela vida.
Talvez muita gente não saiba, mas há quase quatro anos, Santa Maria ganhou um forte aliado nessa luta. Trata-se do Centro de Valorização da Vida (CVV). Há mais de cinco décadas, a organização não-governamental presta serviço de apoio emocional voluntário, gratuito e sigiloso a todas as pessoas que procuram o serviço, desejando compartilhar seus sentimentos.
Conforme Jorge Brandão, um dos fundadores da unidade local, são cerca de 25 voluntários capacitados para ouvir os sentimentos do outro, sem qualquer tipo de pré-conceito, juízo de valor ou aconselhamento.
— O CVV é o amigo certo das horas incertas. Pesquisas comprovam que mais de 50% das pessoas que cometem suicídio não passam por consultórios de terapeutas, psicólogos ou psiquiatras. Estamos presentes em um momento de fragilidade no qual as pessoas precisam conversar, desabafar — comenta o voluntário.
Se precisar, ligue 141
Não são poucas as pessoas que, diante de um momento de extrema angústia, recorrem ao telefone 141. No Brasil, são cerca de 80 postos que recebem, em média, 1 milhão de ligações por ano. Em Santa Maria, são cerca de 300 ligações por mês, sem contar os acolhimentos presenciais. Mas a expectativa é que a procura aumente a partir de junho. Por ser considerado um serviço de utilidade pública, as ligações passarão a ser gratuitas — hoje, quem procura o serviço paga o custo de uma ligação local.
É necessário ressaltar que não é objetivo do CVV substituir o trabalho de profissionais especializados, como psicólogos e psiquiatras. O voluntário Luciano Benitez explica que a ONG desempenha um trabalho preventivo. Trabalhando com a empatia e seguindo fundamentos da psicologia humanista, eles se colocam no lugar do outro. Segundo Benitez, isso "auxilia a pessoa a valorizar as coisas que são importantes para ela. E, assim, ajudá-la a encontrar nela própria o suporte que precisa para superar as dificuldades enfrentadas no momento em que estão procurando ajuda".
Brandão acredita ainda que a pessoa que pensa em suicídio não quer morrer, mas, sim, "fugir de uma dor psíquica insuportável".
— À medida em que ela conversa e consegue se reorganizar, esse momento passa. Todos nós temos ambivalência, temos o desejo do autoextermínio em função dessa dor psíquica insuportável, mas, também, temos naturalmente o desejo de viver. Então, valorizar esse desejo de viver é o nosso trabalho. Quando valorizamos a vida, evitamos o suicídio — argumenta.
Sobreviventes de suicídio
O termo luto por suicídio descreve o período de ajustamento a uma morte experimentado por familiares, amigos e pessoas próximas ao falecido.
De acordo com a OMS, a cada ano, cerca de 7% da população mundial é afetada por casos de autoextermínio. Pesquisas estimam que até seis pessoas sejam intimamente afetadas em cada tentativa ou caso consumado.
O tabu em torno do assunto faz com que o suicídio deixe como legado um estigma negativo que persegue, principalmente, as pessoas mais próximas da vítima.
Conforme a enfermeira Vergínia Rossato, o relato de pessoas que perderam alguém para o suicídio demonstram a angústia e o "dissabor que é não estar junto dessa pessoa, o sentimento de raiva e de culpa por não ter conseguido ajudá-la, mesmo ela tendo dado sinais".
"A pecha suicida é motivo de grande desconforto para os familiares que, além da dor da perda, ainda lidam com a sensação de culpa ou impotência diante do ocorrido", escreve o jornalista André Trigueiro no livro Viver É a Melhor Opção — A Prevenção do Suicídio no Brasil e no Mundo. Não por acaso, países como os Estados Unidos definem pais, mães, irmãos, filhos e amigos de "vítimas de si mesmas" como "sobreviventes de suicídio".

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