quarta-feira, 1 de julho de 2015

Órfãos de suicidas

Por Maria Laura Neves

“Primeiro o choque. Depois a raiva, o abandono e a culpa: será que eu poderia ter evitado? A dor de quem perdeu o pai ou a mãe na mais enigmática das mortes é maior que a saudade para toda vida”.
“Eu tinha 13 anos e estava de férias em Botucatu, na casa do meu pai, quando acordei com os gritos da minha avó, que morava com ele. Levantei da cama e corri para ver o que tinha acontecido. Cheguei na sala e ela me impediu de avançar. Dei a volta pela cozinha e, ao chegar na varanda ... Dei de cara com o corpo do meu pai pendurado... Ele enrolou o cordão de capoeira no pescoço, na viga do telhado... e tirou os pés do chão. Se tivesse esticado as pernas teria sobrevivido... Desesperado, o abracei e tentei levantá-lo. Queria tirá-lo dali. Comecei a perguntar porque tinha feito aquilo comigo. Fiquei ao lado do corpo até a polícia chegar.” Daniel Aragão, 27, também é paulistano e professor de capoeira — a mesma profissão do seu pai.

“Quem vai me levar na escola, quem vai fazer o jantar, quem vai cuidar de mim quando eu estiver doente?” Essas são as primeiras perguntas que vêm à cabeça de uma criança quando recebe a notícia de que seu pai ou mãe se matou. A maneira que lidam com a informação varia com a idade. “Elas só conseguem entender que a morte é um fim irreversível entre os 10 e 12 anos. Antes disso, não concretizam essa informação”, diz a psiquiatra Alexandrina Meleiros, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Um estudo do psicólogo americano especializado em órfãos de suicidas Albert Cain, mostra que crianças de até 6 anos reagem como qualquer outro órfão e só vão entender que seus pais tiraram a própria vida anos mais tarde. É comum que crianças dos 7 anos em diante neguem o suicídio dos pais. Alguns chamam de mentiroso o parente que deu a notícia. Outros simplesmente não registram o que ouviram e criam suas próprias versões para a morte. “Em geral, essas crianças têm raiva de quem deu a notícia. É um mecanismo psíquico necessário para entender o que realmente aconteceu”, diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, do Instituto Quatro Estações em São Paulo, especializado em luto. Quando as crianças aceitam e entendem o suicídio, costumam se sentir culpadas e abandonadas, além de terem medo de que o genitor que sobreviveu possa se matar. Costumam desenvolver um terror noturno ou ter uma regressão de comportamento. “Perdi a confiança nas pessoas depois da morte do meu pai. Se ele, que me amava, se matou, porque outros não podem fazer a mesma coisa? Me apeguei à minha mãe — o maior medo da minha vida é perdê-la”, diz Daniel.”

 “A mãe da psiquiatra Nancy, que deu seu nome à filha, planejou o suicídio. Depois de dar à luz seis filhos, desenvolveu uma depressão. Morreu ao tomar dezenas de soníferos. “Tive o mesmo sonho durante anos. Eu era criança e entrava no quarto de mamãe. Ela estava na cama e só eu via o vidro de pílulas ao lado dela, mais ninguém conseguia. Depois, eu saía do quarto.” O tormento que o pesadelo trazia a Nancy estava ligado ao sentimento de culpa que ela carregava. “Só fui conversar sobre o suicídio depois de adulta. Na infância, lembro do meu pai dizer que ela ficou deprimida depois que nasci. Encarei a morte dela como minha responsabilidade. ‘Se eu não tivesse nascido’, pensava, ‘ela não teria se matado’. Sem os devidos esclarecimentos, muitas crianças agem da mesma forma. Fantasiam explicações e geralmente atribuem a culpa do suicídio para si.” 

“Quando uma pessoa comete suicídio, as respostas vão com ela” 
— Nancy Rappaport

Matéria publicada na Revista Marie Claire de maio de 2010. Disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI140725-17737,00-ORFAOS+DE+SUICIDAS.html.





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