quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Por que evitamos falar em suicídio?


Medo de contágio, sensação de culpa e ignorância criaram um nocivo tabu social. Chegou a hora de tratar o assunto como uma questão de saúde pública
ISABEL CLEMENTE E NELITO FERNANDES

Ignorado, por medo ou culpa, o suicídio permanece no limbo dos assuntos que o brasileiro evita. À sombra do silêncio, porém, as ocorrências aumentam em ritmo assustador. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que, em 15 anos, de 1990 a 2004, o número de casos saltou 59%, superando de longe o aumento do número de mortes no trânsito (17%) e até o de homicídios (55%). Segundo dados do Ministério da Saúde, é um problema crescente entre jovens de ambos os sexos, de escolaridade diversa e de todas as camadas sociais. Na faixa etária de 15 a 25 anos, é a quinta causa de morte. Pelo menos 8 mil brasileiros se mataram em 2004. Para cada suicídio, a Organização Mundial da Saúde estima que outras dez pessoas tentam se matar, sem sucesso. Sobreviver, nesses casos, pode deixar seqüelas profundas, como incapacitação física ou conseqüências psicológicas terríveis. Já as vidas que se encerram dessa forma deixam um legado de dor e danos sociais e financeiros.

É possível estancar essa face oculta da violência? "Suicídio é um problema de saúde pública que pode e deve ser combatido", diz o médico Carlos Felipe Almeida D'Oliveira, coordenador da Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio, do Ministério da Saúde. Ele está à frente de uma iniciativa inédita no país: um plano nacional para reverter a escalada dos suicídios e suas tentativas. Ainda em elaboração, o plano prevê várias linhas de ação, do treinamento dos profissionais da saúde a sugestões de intervenções arquitetônicas nos locais preferidos pelo suicidas, como pontes e vãos em shopping centers. Outra idéia é mobilizar a imprensa. Na visão do Ministério, ela vem erroneamente menosprezando o assunto, como se ele não existisse. "Não falar, não debater, não mostrar que esse é um problema de saúde pública só agrava o quadro", afirma D'Oliveira. "Falar abertamente tira a vergonha e a culpa."

No Brasil, a taxa de suicídios é de 4,5 casos por 100 mil habitantes. Ela pode ser considerada baixa para os padrões internacionais, de 16 óbitos por 100 mil habitantes. A média do país não chama a atenção, mas há regiões em que a incidência de comportamentos suicidas preocupa. No Rio Grande do Sul, o índice de suicídio entre a população masculina chega a 15,5 por 100 mil pessoas. Entre a população masculina idosa é ainda pior: são 30 casos por 100 mil habitantes. Só para comparar, a aids matou seis pessoas em cada 100 mil habitantes em 2005. 

Na cidade fluminense de Valença, a 160 quilômetros do Rio de Janeiro, casos recentes de suicídio deixaram a população assustada. Nas ruas, os moradores falam em até oito mortes nos últimos 40 dias. A Prefeitura reconhece duas, número que é confirmado pela Polícia Civil, mas o Ministério da Saúde já sugeriu um estudo epidemiológico na região. "O que mais se ouvia, no passado, era 'fulano só está fazendo isso para chamar a atenção'", diz D'Oliveira, sobre os sinais emitidos por potenciais suicidas antes de cometer o ato. "É verdade, ninguém se mata se não estiver sofrendo. Se a pessoa tenta chamar a atenção, e não a recebe, o risco de ela se matar aumenta." Às vezes, as ameaças são para valer.

Foi esse o caso de um dos suicidas de Valença. "Mãe, eu fui porque não agüento mais tudo." A frase é uma das poucas que se pode compreender da caligrafia nervosa de Sebastião Edson, o Dinho, de 24 anos, filho da dona de casa Jânia Maria de Fátima. Com lágrimas nos olhos, a mãe passa as mãos sobre o caderno e mira a janela como se buscasse a resposta para a pergunta que a atormenta há dois meses: por que Dinho se matou? A 1 quilômetro dali, outra família sofre o mesmo drama. Por que Paulinho, de 17 anos, escolheu a morte? "Dezessete anos e desistir de viver? Ele não conhecia nada. Não consigo entender", diz a tia do rapaz, Edna Lopes.

Paulo Ricardo Lopes, o Paulinho, estudava na mesma escola na qual Sebastião Edson, o Dinho, era inspetor de alunos. Paulinho se matou dois dias antes de Dinho. Os dois se conheciam, mas não eram amigos íntimos. Dinho resolveu se matar depois de descobrir que fora traído por sua namorada. Paulinho suicidou-se após tentar reatar o relacionamento com sua primeira namorada. Ambos eram populares na cidade e são descritos como pessoas felizes pelos amigos e familiares.

Dinho era alto, forte, campeão de capoeira. Fazia natação e jiu-jítsu. Estava organizando um campeonato de capoeira na cidade. Seu padrasto, Mestre Cid, figura conhecida em Valença por causa das escolinhas de capoeira, diz que o enteado tinha "uma penca de mulheres atrás dele". Há quatro anos, ele mantinha um relacionamento instável com uma moça da cidade. O relacionamento era conturbado. Por causa da mulher, Dinho havia simulado o suicídio duas vezes. Numa delas, comeu pó de café e disse ter ingerido um veneno conhecido como chumbinho. Em outra, simulou ter cortado os pulsos. Na terceira vez, ele não estava fingindo. Um dia antes de seu suicídio, um amigo mostrou a ele uma foto da namorada abraçada com outro homem. Os dois discutiram, a moça negou que o houvesse traído e ainda avisou a família que Dinho estava falando em se matar. O padrasto deu uma bronca no rapaz. Na manhã seguinte, chegou à casa a notícia de que um homem cometera suicídio e estava pendurado numa árvore perto dali. "Quando cheguei lá, vi que era ele. Dinho usou a corda da capoeira para se enforcar", diz Jânia. Ela acredita que seu filho estivesse tentando apenas dar mais um de seus sustos na família, mas calculou mal e acabou morrendo. 

A tia de Paulinho pensa o mesmo sobre o suicídio do sobrinho. Para ela, o garoto queria apenas chamar a atenção. O rapaz fazia parte de um grupo popular de hip-hop na cidade e era bastante querido. Edna diz que ele também era muito procurado pelas garotas do local, mas tinha fixação em sua primeira namorada. Um dia antes de se matar, Paulinho pediu à tia que fizesse estrogonofe, seu prato predileto. Ela respondeu que faria no dia seguinte, mas ele insistiu. "Ele me disse: amanhã não vai dar", diz Edna. O rapaz faltou à aula no dia de sua morte, tomou um banho demorado e foi até a casa da namorada tentar reatar o namoro, que acabara havia três meses. Quando chegou lá, viu a ex com um novo namorado. Ele entrou no porão da casa da garota, pegou uma corda e saiu dizendo que iria provar seu amor. O rapaz se enforcou em uma árvore, exatamente como Dinho faria dois dias depois.

Além da frustração amorosa, outra possível razão para o suicídio de Paulinho é o fato de ter sido abandonado pela mãe, aos 3 meses de idade. O pai morreu quando o garoto tinha 6 anos, num acidente de carro. O menino foi morar com os tios e nunca mais viu a mãe. "Ele se perguntava por que a mãe, sabendo que ele existia, nunca apareceu aqui", diz a tia.

A estratégia nacional de prevenção ao suicídio foi lançada no segundo semestre do ano passado, durante o primeiro seminário nacional sobre o assunto, realizado em Porto Alegre. A ação conta com a ajuda de especialistas, universidades e do Centro de Valorização da Vida (CVV), entidade pioneira na prevenção de suicídios no Brasil. Inaugurado há 45 anos, o CVV existe graças ao trabalho de 2.500 voluntários que se identificam apenas pelo primeiro nome. Eles se revezam em plantões de quatro horas semanais para atender, pelo telefone 141, 1 milhão de chamadas por ano. É uma ligação a cada 35 segundos. "Aqui, a única coisa que importa é que a pessoa ligou para desabafar e foi ouvida. São pessoas angustiadas, deprimidas, solitárias, que precisam de alguém para ouvi-las", diz Antonio, empresário que há dez anos dirige a entidade. Para ampliar os atendimentos e dialogar com jovens, o CVV está agora usando a internet.

Os números do Centro de Valorização da Vida mostram a carência de um atendimento público apropriado. Registros na literatura internacional mostram que 40% dos suicidas procuraram algum serviço de saúde na semana anterior à morte. Para atender à demanda que o Brasil oculta, o Ministério da Saúde resolveu adotar uma estratégia que inclui até marca própria, Amigos da Vida. Ela prevê medidas como treinamento dos profissionais da área de saúde para identificar grupos vulneráveis. Hoje, sabe-se que idosos, usuários de drogas e álcool e pessoas que sofrem de esquizofrenia e depressão aparecem em maior número nas estatísticas de suicídio. Mas os mecanismos que levam um indivíduo a acabar com a própria vida são variados e de difícil compreensão.

A mensagem que o Ministério da Saúde quer passar com toda essa campanha é que, seja qual for o motivo, o suicídio é um fenômeno crescente na sociedade desenvolvida, mas pode ser evitado.

Nesse sentido, alguns países têm adotado ações simples. Na semana passada, as autoridades sanitárias americanas determinaram que os antidepressivos tragam na embalagem um alerta sobre o risco de suicídio em consumidores entre 18 e 24 anos. Ainda não está claro se os remédios podem ser culpados por tentativas de se matar dos jovens. Mas análises estatísticas sugerem que a ocorrência de pensamentos suicidas e suicídio propriamente dito é ligeiramente mais elevada entre os jovens que tomam antidepressivos que entre os tratados com pílulas sem efeito terapêutico (placebo). É possível que a própria depressão e outras desordens psiquiátricas que acometem os consumidores dos remédios sejam a causa dos suicídios. Enquanto esse ponto não é esclarecido, a agência que regula medicamentos nos Estados Unidos - a Food and Drug Administration (FDA) - achou prudente exigir o alerta nos rótulos. No grupo de pacientes com mais de 65 anos, o efeito é oposto. Os estudos demonstram que o uso de antidepressivos reduz o risco de comportamento suicida.

Outra linha de ação que começa a ser adotada no Brasil está nos núcleos de apoio aos familiares. O ComViver é um projeto piloto no Rio de Janeiro, financiado pelo Ministério da Saúde. O trabalho começou há cinco meses e, durante esse período, 71 pessoas já foram atendidas. Duas psicólogas fazem o atendimento individual e em grupo dos familiares, chamados por elas de "sobreviventes". Os interessados recebem tratamento gratuito. Quando procuram a organização, são atendidos sozinhos. Depois, passam para a terapia em grupo. Hoje, oito parentes de suicidas estão sendo atendidos. "É importante o tratamento em grupo porque a maioria acha que isso só acontece com eles", diz Ana Maria Ferrara, uma das coordenadoras do ComViver.  

Ela afirma que é imprescindível levar a sério qualquer ameaça de suicídio. "Se uma pessoa está dizendo que quer se matar é porque está precisando de ajuda. É preciso ouvir e ajudá-la a resolver seus problemas." A psicóloga aconselha a impedir que o amigo ou parente tenha acesso a objetos e remédios comumente usados em tentativas de suicídio.

Isabel Quental, outra coordenadora do projeto, diz que as famílias de suicidas freqüentemente se sentem culpadas pela morte. "A família se envergonha e se recolhe, porque acredita que falhou em sua missão de cuidar dos seus." Segundo ela, o luto pelo suicídio é muito maior que o das outras mortes. Enquanto a recuperação pela perda de um parente dura de seis meses a um ano, em média, a dor pela morte por suicídio pode até mesmo atravessar gerações. "Já atendemos casos de pessoas que não se recuperaram de suicídios de parentes que aconteceram há dez anos." Às vezes, os parentes de suicidas ainda sofrem o estigma social. "Já tivemos relatos de mães que foram apontadas por pessoas que disseram: 'Aquela é a mãe do suicida'."
Isabel diz que o sentimento de culpa aumenta porque é muito freqüente um suicida repetir a ameaça várias vezes, sem concretizá-la. Ou fazer tentativas frustradas antes de consumar o ato. "Nesse período, é comum o familiar pensar que, se a pessoa morresse, seria melhor, porque se livraria de ter de cuidar do outro. Quando a morte vem, a culpa é enorme."

A falta de informações sobre o tema acaba contribuindo para que o suicídio seja tratado como um tabu e as famílias sejam vítimas de preconceito. "Quem, num momento de sofrimento, nunca pensou que seria melhor sumir?", diz Ana Maria. "É por isso que o suicídio assusta tanto, porque qualquer um de nós é tentado a cometê-lo." Ela afirma que os homens são as maiores vítimas do suicídio porque se sentem muito cobrados e têm mais dificuldade de compartilhar seus problemas. "O homem é mais inflexível diante do sofrimento. É muito mais exigido socialmente que ele seja forte. É difícil para um homem pedir ajuda." Dos oito pacientes que buscam apoio do ComViver, apenas dois são homens.

Parte do estigma que as famílias sofrem vem da crença de que os suicidas sempre dão sinais claros de suas pretensões e a família não dá atenção às pistas. Não é verdade. O projeto ComViver já atendeu, por exemplo, a mãe de um adolescente que se matou porque era cercado de cuidados demais. "Ele simplesmente não conseguia encontrar um espaço para ser ele mesmo. Isso prova que não existe um padrão para o suicídio, cada caso deve ser analisado separadamente", diz Ana Maria. 

Para ampliar o debate sobre o tema, o Ministério da Saúde prepara um guia para jornalistas, a fim de orientar sobre a melhor maneira de noticiar o assunto. A imprensa evita publicar suicídios temendo o que os especialistas chamam de "efeito Werther". O nome remete ao personagem de um livro de Goethe, publicado em 1774. As Desventuras do Jovem Werther relata a história de um jovem apaixonado por Charlotte, mulher casada e feliz. Werther, inconsolável, se mata. Historiadores relatam que o livro foi proibido em vários países por causa de uma súbita epidemia de suicídio entre jovens. O efeito contágio existe, diz o médico D'Oliveira, do Ministério da Saúde, sobretudo quando um astro pop ou um líder carismático tiram a própria vida. Os jovens são o grupo mais vulnerável e influenciável. Para sentir-se estimulado, basta saber o que aconteceu, não importa muito ler a respeito, segundo D'Oliveira.

O jornalista Arthur Dapieve decidiu investigar a relação da imprensa com o suicídio. Sua dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio, virou o recém-lançado livro Morreu na Contramão - O Suicídio Como Notícia. "Eu queria saber se era um medo inventado pela imprensa", diz Dapieve. "Em 2004, por exemplo, o jornal O Globo registrou apenas três casos de suicídio em todo o Estado do Rio. Houve muito mais que isso", afirma. "Mas a imprensa só reflete a sociedade à qual ela serve, e essa sociedade tem medo de tocar no assunto." Parte do silêncio se deve à crença de que o relato de casos pode ajudar a criar uma espécie de efeito Werther. Essa quase unanimidade está sendo rompida pela visão de que é melhor debater o problema que se esconder dele. O consenso que começa a se construir é que a sociedade não pode mais negar sua atenção ao suicídio.



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