quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Suicídio e preconceito: Mais de 40% das trans nos EUA já tentaram o suicídio

Sufocados pelo desespero causado pela exclusão, transgêneros nos EUA vivem à margem de uma sociedade que vem tratando com glamour um tema que não superou estatísticas de incivilidade.

Mais de 40% dos estimados 700 mil transgêneros que vivem no país já tentaram se matar, ante 1,6% da média da população. Enquanto 0,6% dos americanos são HIV positivo, 3% dos transgêneros têm a doença. Negros e latinos têm índices maiores: 25% e 11%, respectivamente.

Os dados compõem a maior pesquisa sobre transgêneros nos EUA até hoje, feita em 2011 pelo Centro Nacional pela Igualdade de Transgêneros com 6.400 pessoas.

Não raro relegados a submundos como o da prostituição, criminalizada no país, transgêneros relatam casos de abuso sexual e assédio moral mesmo sob a tutela do Estado, dentro de prisões.

No último ano e meio, figuras conhecidas no país revelaram ser transgêneras e reforçaram a luta por inclusão.

Em abril, Bruce Jenner anunciava que o homem que conquistara o ouro no decatlo na Olimpíada de 1976 e aparecia na TV como padrasto da celebridade Kim Kardashian era, no íntimo, uma mulher. Aos 65 anos, Jenner passava a se chamar Caitlyn.

Em 2014 fora a vez da atriz Laverne Cox, 31. Cox relatou à revista "Time" ter sofrido discriminação na infância, no Alabama. Tentou o suicídio, foi para Nova York e trabalhou como garçom até a carreira de atriz deslanchar com a série "Orange Is the New Black".

Mas a espetacularização incomoda ativistas marginalizados, sem acesso a tratamentos que façam a transição mais palatável à sociedade.

No Estado da Virgínia, em julho, um juiz rejeitou a argumentação da defesa de um garoto transgênero que processa sua escola por impedi-lo de usar o banheiro masculino e afirmou que transgêneros têm "distúrbio mental".

A opinião encontra eco entre psiquiatras como Paul McHugh, da Universidade Johns Hopkins. Para ele, oferecer tratamento hormonal e cirurgias a um transgênero "equivale a lipoaspiração em uma pessoa anoréxica". Não se ataca a causa dessa "confusão mental", alega, senão com terapia ou medicações.

Para o Centro Nacional pela Igualdade de Transgêneros, não se identificar com o sexo de nascimento não é doença mental. A organização diz que pode haver razões genéticas e/ou psicológicas.

'ESTRANGÊNEROS'

Para a comunidade transgênera, Nova York é um porto seguro, com seus centros de assistência e ativismo organizado. Em 9 de agosto, um encontro do GIP (Projeto de Identidade de Gênero, em inglês) na praia de Coney Island reuniu cerca de cem pessoas.

A Folha ouviu de diferentes participantes relatos de alívio, mas constatou a melancolia do rompimento com o passado e a vergonha de um status mal compreendido.

Julisa Morales, 34, nasceu no Brasil e foi para os EUA aos 4. Divide intimidades eróticas sem inibição. Seu único tabu é o nome de batismo: "Aquela pessoa não existe mais".

"Eu era infeliz. Um menino gay, feminilizado, que só gostava de dançar", conta. Queria um corpo igual ao da ex-globeleza Valéria Valenssa.

Saiu de casa aos 17, passou a tomar hormônios e se prostituiu. Com o dinheiro, fez cirurgias. "Queria ser uma mulher gostosa, como brasileiro gosta. Nasci num corpo que tem os dois lados e acho que sou abençoada por isso. Tem gente que gosta de nós, sabe?"

A argentina Cecilia Gentili, 43, deixou Rosario para viver como mulher na praia de Camboriú (SC), onde se prostituía. Expulsa do Brasil por falta de documentos, voltou para a Argentina e regrediu na transição. "A tristeza era coberta pelas drogas."

Anos mais tarde, em Nova York, foi presa por não ter visto. No limbo entre as celas de mulher e de homem, foi liberada com uma tornozeleira eletrônica, afirma. Decidiu se cuidar. Fez tratamentos e obteve asilo político nos EUA.

A mexicana Karin Cruz, 33, flertava à distância com um homem quando foi abordada pela Folha. A repórter sugeriu conversarem mais tarde, mas Karin desistiu da paquera. "E se ele se decepcionar?"

Magra, cabelo liso e longo, de gestual delicado, ela diz ser agredida frequentemente por homens quando percebem que é transgênera. Agressão que começou em casa. "Meu pai é homofóbico. Não nos falamos mais."

Violentada por um ex-namorado, a peruana Maia Wong (não revela a idade) fugiu de seu país. Obteve asilo dos EUA, mas continuou sofrendo abusos em Nova York.

Maia diz ter sido agredida por policiais que achavam que era prostituta. Foi vítima de tentativa de estupro e sofreu ameaças de morte de outro ex. "Ponho muitos muros em volta de mim, porque sou uma sobrevivente", define.

Matéria publicada pela Folha de São Paulo em 20/09/2015

Imagem do filme "Orações para Bobby" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário