domingo, 22 de abril de 2018

Por que falar de suicídio? __________ Revista Época, Abril de 2018

Os sobreviventes do suicídio convivem com um sofrimento peculiar, carregado de solidão e culpa.

Por Flávia Tavares

Na cozinha, numa noite quente de fevereiro, Terezinha, Joseval e Marina falavam de morte. Lamentavam a perda do padrinho e tio de Joseval, seu Leonardo, de mais de 80 anos, que morava na casa ao lado e fora enterrado horas antes. Com a mente invadida pelo Alzheimer, seu Leonardo costumava espiar o afilhado e sua mulher pelo portão da garagem, onde eles tocam sua empresa de seguros. “Vou sentir muita falta”, disse Terezinha. Marina, de 19 anos, estava com o rosto vermelho. Havia chorado mais cedo. Com sua inseparável e extemporânea touca de lã, na cadeira onde sempre se sentava, ela comeu pouco do bolo de iogurte que a mãe fizera. Estava triste. Relembrou outras perdas da família, falou do bisavô adoentado. A morte os espreitava. Terezinha recitou um trecho do Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. “Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável... porque tudo o que é vivo morre.” Perto das 20h30, cansados, foram todos se deitar. Na manhã seguinte, Terezinha encontraria a filha caída no chão do quarto. Marina morreria 20 dias depois.

Naquela tarde Marina ficara sozinha em casa por cerca de uma hora, enquanto os pais enterravam o padrinho Leonardo. Foi a primeira vez em meses que ela se viu sem supervisão. Na mesma cozinha, mórbida e resignada, Marina acalmara a mãe antes que ela saísse para o velório. “Vai tranquila. Se eu tivesse que fazer alguma coisa, já tinha feito. Enforcar dói. Se eu me jogar da janela, vou me machucar e não vou morrer. Corte dói.” Terezinha acreditou. Convocou Eduardo, amigo mais próximo de Marina, para fazer companhia à garota até as 15 horas. Calculou que estaria de volta perto das 16 horas. Nesse intervalo, Marina foi a uma Casa do Norte ali perto, no bairro de Ferrazópolis, em São Bernardo do Campo. Comprou uma garrafa de cachaça. Ingeriu remédios para depressão aos poucos, para não vomitar. Hoje Terezinha sabe que, ao divagar sobre a morte naquela noite, a filha já estava sob o efeito da mistura. São esses dois momentos, antes e depois do enterro de seu Leonardo, que Terezinha reprisa em sua cabeça nas noites em que desperta abruptamente. “Por que confiei que ela estava bem? Por que não percebi?”, Terezinha refez as perguntas ao lado de Joseval numa tarde de novembro, olhar oco. Fazia exatos oito meses que Marina havia morrido.

Terezinha e Joseval são sobreviventes, como são chamados os parentes e amigos próximos que perderam alguém para o suicídio. Os pais de Marina, além de viver o tormento inominável de perder uma filha, sobrevivem a um luto que é feito de culpa. E solidão. “A pior parte não é ver um filho no caixão. É aprender a viver sem ele”, Terezinha chorou. Os amigos do casal, aqueles que “mandavam bom dia, boa tarde e boa noite no WhatsApp”, afastaram-se. Não sabiam como se comportar. “Agora eu entendo porque sou sobrevivente. Você se sente um fracassado, tem uma série de sentimentos com que não sabe lidar. Olha para o lado e está sozinho. Para você fazer a mesma coisa que o outro fez é uma questão de ó...”, ela estalou os dedos e mais uma lágrima escorreu. Os enlutados por suicídio são considerados um grupo de risco importante, com tendências à depressão e com até dez vezes mais chances de tentar se matar também.

Nós não fomos treinados a pensar na morte. A falar dela. Especialmente de suicídio, essa morte voluntária e violenta, em que assassino e vítima são um só. O suicídio nos faz transgredir o instinto humano mais básico. Esmaga a autoestima de quem fica, os insuficientes. Confunde. Como alguém tem coragem? Será que eu teria? Dó e repulsa se misturam no julgamento que, inevitavelmente, se segue. E o que é apropriado dizer para quem acabou de passar por uma perda dessa dimensão? As reações tendem a se dividir entre os que se calam, constrangidos, e os que falam, sem freios, o que lhes vem à cabeça. “‘Você é nova, vai ter outro filho’. Como se um filho substituísse outras pessoas. ‘Quem tem um filho não tem nenhum.’ ‘Você não viu? Foi assim, do nada? Ué, se ela tava com depressão, por que vocês não cuidaram?’ ‘Você não sabia que ela não podia ficar sozinha? Por que você deixou?’”, Terezinha lembrou os comentários que ouviu dias após a morte da filha.

Terezinha e Joseval só tinham um ao outro. Os pais de Terezinha não admitiam que Marina havia se matado. A irmã nunca mais tocou no nome da sobrinha. Terezinha temeu enlouquecer. Sentia-se rasgada. Repisava cada instante que culminou na tragédia. Buscou culpas — e elas, invariavelmente, recaíam sobre seus próprios ombros. Três semanas depois da morte de Marina, Terezinha perguntou a uma cliente que havia perdido um filho em um acidente de moto como ela fazia para se levantar todo dia. Ouviu dela que sua vida ficara pausada, destruída, por três anos. Terezinha decidiu, naquela segunda-feira, que precisava falar com alguém que estivesse passando pelo mesmo que ela. Descobriu que havia grupos de apoio para sobreviventes de suicídio — um deles, o Vita Alere, promovido pela psicóloga Karen Scavacini. As reuniões são mensais e haveria um encontro naquele sábado. Terezinha e Joseval deixaram de ir à missa de um mês da morte de Marina para ir ao encontro. “Eu não podia esperar mais. Lá, me senti acolhida. Quando as pessoas começaram a falar, pensei ‘poxa, dá impressão que estão falando de minha filha’”, disse Terezinha. A predominância era da culpa, Joseval explicou. “Se é com alguém que não passou por isso, a gente mede o que fala, como fala. No grupo, a gente pode dizer abertamente o que sente. Foi um alívio.”

A sociedade transfere para o sobrevivente o julgamento que faria do suicida. É como sobreviver a uma catástrofe.
O luto tem mais impactos sociais, culturais e pessoais

Três dias depois de começar a contar sua história para a reportagem, Terezinha e Joseval participaram de um evento do Vita Alere, no Dia Internacional dos Sobreviventes Enlutados. Numa casa espaçosa na Zona Sul de São Paulo, enquanto ajeitava as cadeiras e almofadas, Karen Scavacini contava como decidiu estudar o luto pelo suicídio. Em uma aula numa faculdade na Suécia, uma professora de neurociência mencionou que a filha havia se matado dez anos antes. A voz da professora sumiu. Ela não conseguiu prosseguir. “Como uma pessoa, depois de uma década, não conseguia sequer falar do ocorrido? Ela contou que, quando voltou a trabalhar, só duas das 20 colegas psicólogas vieram conversar com ela sobre a morte da filha.” Scavacini fez mestrado e doutorado sobre o tema e montou um dos grupos pioneiros de apoio a sobreviventes no Brasil. “Recebo pessoas enlutadas há dez, 15 anos, que nunca tocaram no assunto com a família. A sociedade transfere para o sobrevivente o julgamento que faria do suicida: alguém covarde, fraco, que não tem amor a Deus. É por isso que os chamamos de sobreviventes. É realmente como sobreviver a uma catástrofe. O luto por suicídio tem mais impactos sociais, culturais e pessoais. A pessoa pode adoecer, tem um aumento de uso de álcool e drogas.” Estima-se que entre cinco e dez pessoas próximas sejam profundamente afetadas por um suicídio. Perto das 10 horas, 11 pessoas haviam chegado para o evento.

Diante de um tecido batizado de “Colcha da Memória Viva”, Joseval conversava com outro homem que perdera o filho para o suicídio. Os participantes do grupo haviam sido convidados a bordar uma foto de quem perderam na colcha. Já havia sete retratos — cinco de jovens. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 800 mil pessoas tiram a própria vida a cada ano no mundo. Uma a cada 40 segundos. É muito mais comum do que o silêncio sugere. O suicídio é a segunda maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos no mundo. No Brasil, onde 11 mil pessoas se matam anualmente, o suicídio é a quarta maior causa de mortes entre jovens. Joseval é um homem alto, magro, com a voz permanentemente calma. Marina tinha seu biotipo. Em um tom cúmplice, ele contava para aquele outro pai como sua garota vivia sorrindo — em antítese à depressão que viria a consumi-la. Uma senhora levou dois bolos para o lanche. Os presentes assistiriam a dois filmes: um com depoimentos de sobreviventes enlutados; outro com os mesmos sobreviventes anos depois. A ideia era mostrar como o luto evolui, que é possível aprender a conviver com aquela dor devastadora e que aqueles sentimentos são universais.

“Todos nós passamos pelo processo de luto, uma reorganização psíquica depois de uma perda significativa. É um processo universal, mas também muito particular. Cada um expressa seu luto de acordo com suas características pessoais. E o suicídio está no espectro das mortes inesperadas, que incluem acidentes e violência. Há o agravante das perguntas: por que a pessoa não quis viver? Será que eu, parente, não fui o suficiente para a pessoa querer permanecer viva?”, disse Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos da Morte da Faculdade de Psicologia da USP. Além disso, ela acrescentou, para pessoas religiosas a questão pode ser ainda mais traumática. Nenhuma religião ocidental autoriza, permite ou referenda o suicídio — a maioria condena.

Durante a exibição dos vídeos, alguns choraram baixinho. Duas irmãs se entreolharam, talvez reconhecendo nos depoimentos o comportamento do irmão que se foi. Terezinha e Joseval estavam de mãos entrelaçadas. Scavacini comandou a formação de um círculo. A senhora dos bolos contou como se identificou com um homem no filme que, como ela, perdera o filho. “Eu me sinto como uma árvore com as raízes expostas. Ele era meu único filho, minha conexão com essa vida. Estou desterrada”, a senhora disse. Terezinha ouviu com atenção. Ela já confessara em sua casa que só não pensava em se matar, como fez sua Marina, porque tem Edgard, seu outro filho, que tem uma forma moderada de autismo. Terezinha pediu a palavra. Contou como se identificou, sobretudo, com a solidão descrita nos vídeos. Em seguida, outra mulher interveio e reclamou do mesmo isolamento. Ela perdera o marido havia três anos. “Às vezes, a gente só precisa de um abraço”.

Na manhã em que receberam a reportagem em sua casa em São Bernardo do Campo, Terezinha e Joseval se sentaram no sofá da sala de TV onde, na manhã de 22 de fevereiro de 2017, conversaram por alguns minutos antes de Terezinha encontrar o corpo da filha. Na estante em sua frente, havia fotos de Marina ainda bebê. “A Marina sempre foi um anjinho, encantadora. Ela não esperou para nascer. Foi tão apressada quanto para morrer”, disse Terezinha. A impaciência de Marina se tornaria seu traço mais fundamental. Decidida a prestar vestibular para química forense, descompensou quando notou que, por ter se esquecido de pagar a taxa de inscrição, adiaria sua entrada na faculdade em um ano. Desde os 16 anos já apresentava dificuldades em operar com equilíbrio suas emoções. Comportamento próprio da idade, pensavam os pais. A frustração desproporcional era sinal de que talvez houvesse algo mais. “Ela tinha uma coisa de achar que tudo ela estava perdendo tempo. E se frustrava muito fácil. Idealizava uma situação e, se não desse certo, ficava muito decepcionada”, lembrou Joseval. Com o tempo, isso se configuraria menos como um traço de personalidade e mais como um sintoma.

Marina ainda encontrou ânimo para cursar alguns meses de filosofia na Universidade do ABC. Até que, em setembro de 2016, ela interpelou Terezinha. Queria abandonar o curso. E queria ajuda. A história de Marina, Terezinha e Joseval é um desvio na sucessão de mitos criados em torno do suicídio. É comum que se diga que uma pessoa que se mata não havia dado sinais de que o faria. Ou que foi negligenciada pela família. A própria OMS, no afã positivo de alertar a população, dissemina a informação de que “90% dos suicídios podem ser prevenidos”. O que está por trás desse necessário alerta é que essa esmagadora maioria de casos tem relação comprovada com algum transtorno mental. Portanto há uma chance importante de se prevenir que a pessoa leve a cabo seu fim. Ainda assim, isso não quer dizer que os suicídios sejam necessariamente evitáveis. Marina percebeu que estava doente. Pediu ajuda. Recebeu. E se matou. E Terezinha e Joseval precisavam falar disso. Logo na primeira reunião no Vita Alere, ouviram da psicóloga que, sem ter as informações corretas sobre o assunto, não há como prevenir. “Isso foi um alívio porque eu entendi que não tive culpa nessa parte”, afirmou Terezinha.

Terezinha e Joseval marcaram uma consulta psiquiátrica para Marina ainda em setembro. O médico fez um diagnóstico de depressão e prescreveu um medicamento manipulado. (Hoje, os pais sabem o quão reprovável é que se manipulem medicamentos para transtornos mentais.) Marina passou a insone crônica. Deixou de se alimentar. Tinha manhãs de pura euforia, em que planejava saltar de asa-delta e vender a guitarra e o videogame, e noites de fala mole e leseira. Na primeira semana de 2017, Marina se viu às voltas com uma desproporcional frustração quando seu dentista desmarcou seu atendimento. Terezinha foi avisada por uma amiga da filha que algo grave havia acontecido. Ela subiu desvairada as escadas e, ao chegar ao quarto, Marina chorava muito. Ergueu a camiseta e mostrou a barriga e as coxas cortadas com gilete. “Eu tô sentindo uma coisa, eu não sei... É uma coisa tão ruim. Fiz isso para ver se passa.” Marina não sabia descrever com clareza o que sentia. Só repetia que era “muito ruim”. Estava “tudo errado”.

Joseval levou sua menina para o pronto-socorro. Uma dermatologista de plantão trocou a medicação: mandou manipular 120 cápsulas de uma fórmula de antidepressivo com relaxante muscular. (Esse seria o remédio que Marina usaria para se intoxicar semanas depois.) Marina não escondeu sua ideação suicida. Às 5 horas da manhã, bateu no quarto dos pais e se deitou entre eles. Contou que estava com pensamentos autodestrutivos. “Mãe, estou com medo. Medo de fazer algo contra mim. Eu não estou bem, não consigo dormir.” Terezinha segurou a mão da filha até que o dia terminasse de chegar. Atendendo ao pedido de Marina, procurou uma clínica onde pudesse interná-la. A busca por um tratamento que desse paz a Marina incluiu sete médicos em quatro meses, uma breve internação e um monitoramento incessante. Um dos psiquiatras, numa consulta rápida, diagnosticou Marina como “borderline” — distúrbio de personalidade que tem, entre suas principais características, além da incurabilidade, intolerância a frustrações e tendências suicidas. Marina ficou aflita com o rótulo definitivo.

Na clínica onde ficou por apenas três dias, Marina iniciou o tratamento com sessões de massagem e hipnose e parecia estar em plena evolução. Foi nesse quadro de melhora que Terezinha e Joseval se viram compelidos a acreditar, naquela tarde na cozinha, que Marina estava controlada o suficiente para passar uma hora sozinha. Em retrospecto, eles detectaram pistas de que foram conduzidos pela garota. Numa noite em que ameaçou se machucar falando com o amigo Eduardo pelo celular, Marina observou de onde a mãe tiraria o remédio que a levaria a adormecer. Os pais também encontraram mais tarde uma corda no quarto da filha — por isso ela dissera que “enforcar dói”. Marina calculou seu fim. Publicou suas ideações no Twitter. “Internação domiciliar e o horror de não conseguir se matar em casa” (17 de janeiro); “Eu deveria ter me matado ano passado, ia me poupar de tanta desgraça” (17 de janeiro); “Quitando da vida com elegância” (27 de janeiro); “Um jogo chamado com quantas coisas diferentes eu consigo me cortar” (15 de fevereiro); “Rivotril e 51 para ficar bem de boas com a vida” (21 de fevereiro). Marina se contorcia para aprender a viver com a dor de estar viva. Vislumbrava na morte futura a memória de um tempo sem angústias.

Como enquadrar a história de Marina nos 90% de suicídios que podem ser prevenidos? A sequência de diagnósticos e tratamentos equivocados da jovem torna seu percurso único. Como são, na opinião da professora Maria Júlia Kovács, todos os casos de suicídio ou de tentativa. Kovács contou que o suicídio aparece como tópico nos cursos de psicologia somente em suas disciplinas e em apenas um ou dois encontros. “Minha aula é ‘Suicídios’, no plural. Cada história começa num lugar, sobre o qual muitas vezes não temos clareza, e resulta em uma morte. É muito difícil dizer ‘o suicídio é’ alguma coisa.” Ela disse que o interesse pelo assunto vem aumentando no meio acadêmico, mas ainda há muito chão na capacitação de profissionais para lidar com o tema.

Terezinha e Joseval são testemunhas e vítimas desse despreparo. Quando encontrou a menina desacordada, Terezinha deu um berro. Joseval, num salto, levou a filha para o pronto-socorro. A médica plantonista pediu que eles investigassem o que a filha havia tomado; enquanto isso, deixaria o corpo “metabolizar” a substância. Não foi feita uma lavagem estomacal. A enfermeira perguntou: “O que ela fez? Você sabia que gente com depressão não pode ter acesso a medicamentos?”. Terezinha sabia, óbvio. O diretor do hospital disse que, quando Marina melhorasse, a mãe deveria botar a menina ajoelhada no milho, “é disso que ela está precisando”. Marina foi transferida para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) de outro hospital particular. No sábado de Carnaval, dia 25, a administração resolveu pintar as paredes da UTI. Ao chegar para a visita da tarde, Terezinha deparou com o retrato tenebroso do descaso: haviam transferido todos os outros pacientes e deixado só Marina para trás, coberta com um plástico preto. “Tirei uma foto e o enfermeiro ficou bravo comigo. Falei: ‘Ponha-se no meu lugar. É minha filha. Não basta tudo que estou passando?’”, Terezinha chorou. No dia 13 de março, desentubaram Marina pela segunda vez; na primeira tentativa, ela não aguentara. Fraca, conseguiu balbuciar algumas palavras. Pediu que a mãe lhe trouxesse uma roupa, seus óculos. “Eu quase morri duas vezes. Agora, está bom. Não quero mais. Quero ir para casa.” Joseval e sua mulher foram embora otimistas. Naquela mesma madrugada, sem que ninguém soubesse explicar por quê, Marina morreu.

Os pais examinaram obsessivamente os últimos dias da filha. Concluíram que não foi a negligência dos profissionais de saúde ou um potencial erro médico no diagnóstico que a matou. Foi suicídio. O que eles têm imensa dificuldade de acessar é o que levou sua menina a se extinguir. “A Marina não fez essa escolha em sã consciência. Ela estava doente.” Ainda assim, há um caminho mental e emocional percorrido pelo suicida que assombra os sobreviventes. Nisso, as reuniões dos grupos ajudam muito. Eventualmente, sobreviventes de tentativa de suicídio aparecem nos encontros e oferecem uma perspectiva do que se passou.

Em um dos grupos, Terezinha conheceu M. — que aceitou falar com a reportagem sobre sua quase morte. Aos 52 anos, numa manhã de abril do ano passado, ele executou o plano que fizera na véspera. Acordou, levou um dos filhos à escola, comprou dois medicamentos — um fitoterápico, um tarja-preta com receita falsificada —, um botijão de gás e uma válvula. Prosseguiu para um canto da garagem do condomínio em seu carro. Ingeriu os remédios, destravou o gás e abriu no colo o notebook onde escreveria suas palavras finais, pedindo ao cunhado que acabasse de educar seus filhos em seu lugar. Dizendo a sua companheira que a amava... M. não chorava. Também não estava calmo. Estava confuso. “É uma dor inexplicável. E o desejo era simplesmente cessar a dor. Não era atacar, me defender, punir, nada disso. Era simplesmente cessar a dor insuportável. Insuportável.” M. apagou.

O que aconteceu depois disso ele só sabe pelos relatos dos familiares. Sob o efeito das drogas e do gás, M. tentou mover o carro. Uma vizinha viu a cena e chamou o porteiro. Ele foi carregado para seu apartamento. Acordou no hospital, com seu irmão mais velho sentado ao lado. “Que merda”, M. balbuciou. O irmão respondeu: “Fique tranquilo”. Impossível. M. pensava nas consequências de sua atitude. “Causei o mesmo estrago que teria causado se eu tivesse morrido. Só que não morri. Tive as mesmas perdas. Minha mulher é viúva de um marido vivo, meu casamento acabou, ela se sente rejeitada, sente que eu não a escolhi.”

M. contou uma sequência de traições, de desventuras profissionais e pessoais, que culminaram em sua tentativa de suicídio. Na noite anterior, tivera um desentendimento definitivo com a mulher, até ali sua sustentação. Ao ver ruir esse pilar, ele disse, algo se desconectou. “Não é uma coisa racional. É uma situação completamente desconectada. Eu não me encontro mais aqui.” Os olhos de M. marejaram ao recordar-se do filho questionando se não havia pensado nele antes de ligar o gás. “Claro que não. E nem podia. Se você para para pensar, você não faz. Essa é uma dúvida comum entre os enlutados.” Como não encontrou um grupo específico de apoio a sobreviventes de tentativa de suicídio, M. buscou ajuda em encontros para enlutados. Ele, que vive um luto de si mesmo, se sente como um espião. “Sou da outra facção. Eu queria entender qual a razão de eu estar ali, e hoje sei. É para trazer aos enlutados uma visão que eles não têm. As pessoas (que cometem suicídio) enfrentam dilemas. E os dilemas simplesmente não têm resposta.”

Marina não chegou a ligar para o Centro de Valorização da Vida (CVV), referência no atendimento anônimo de pessoas com ideias suicidas. Mas mandou e-mail pedindo ajuda para um grupo similar do Rio Grande do Sul. Os jovens são assim, tendem a buscar socorro por meios digitais. O CVV tem buscado se reinventar para alcançar esse público — hoje atende por chat, Skype, e-mail e em breve deve lançar um canal via WhatsApp, além de nacionalizar seu número gratuito, o 188, que já está em 15 estados e no Distrito Federal. Tem conta no Facebook, no Twitter e no Instagram, onde compartilha dados sobre suicídio, saúde mental e mensagens de apoio emocional. Numa tarde muito quente, na unidade do CVV de Santo André, Robert Paris, o presidente da entidade, contou da capacitação pela qual passam os 2.500 voluntários em todo o país. Há dois princípios que guiam a atuação. O primeiro é o acolhimento. “É a capacidade de enxergar pessoas e não comportamentos. É a crença em que essa pessoa, num ambiente de baixa ameaça, pode sair daquele estado”, afirmou Paris, um ex-executivo, que é voluntário há 23 anos. O segundo filtro obrigatório é o da empatia. Mas não aquela do “se colocar no lugar do outro”. “Se eu me colocar em seu lugar, me levo comigo. É preciso enxergar a vida do outro pelos olhos dele e não julgá-lo com os meus.”

Foi com esse propósito que o CVV montou os Grupos de Apoio aos Sobreviventes do Suicídio, o Gass. O primeiro foi aberto em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, em 2014. No mesmo ano, começou o da Rua Abolição, no centro de São Paulo — Terezinha e Joseval frequentam esse grupo além do Vita Alere. Quem conduz o encontro na Abolição é o voluntário Tino Peres, no CVV há dez anos. São poucas as regras nas reuniões, que duram cerca de duas horas. Uma preocupação é evitar que alguém monopolize o discurso. É um equilíbrio delicado, porque a repetição das histórias e dos sentimentos é um recurso comum em quem padece de luto. E pode ser curadora. “A elaboração da dor não se dá na antítese. Ela acontece na identificação com outros, na percepção de que uma ou outra sensação é ‘normal’”, explicou Peres. A sala onde os encontros acontecem, no subsolo do casarão da Abolição, tem um ar de repartição pública, amenizado pelas toalhinhas de crochê na mesa e o cheiro de café. Terezinha e Joseval se sentem bem ali. Joseval disse que “o Vita Alere é formado por psicólogos especialistas em suicídios. Lá no Gass é voluntário. Me sinto bem lá. Eu acho muito lindo uma pessoa que está lá para te escutar, está doando seu tempo para escutar”.

Uma dessas voluntárias se chama Márcia Regina Dias. Ela faz parte da minoria de 3% de voluntários do CVV que têm algum suicídio na família. Em março de 1999, seu pai, Manuel, um alfaiate de 66 anos, enforcou-se. Márcia levou dez anos para verbalizar a sentença “meu pai se matou”. “Não assumia para ninguém, não conseguia. Tinha medo do julgamento.” Manuel era alcoólatra. Para salvá-lo do vício, Márcia tentou religião, tratamento. Ele jamais havia manifestado ideações suicidas. Nas vésperas de Manuel se matar, eles brigaram. O pai procurou pela filha em sua casa para fazer as pazes, mas ela se escondeu no banheiro. Dias depois, ele foi encontrado por um vizinho. No velório, Márcia sentiu as lâminas acusatórias dos olhares dos parentes. Por anos, sua mãe foi a única com quem falava do assunto. “Eu não contava para amigos, para pessoas na igreja. Dizia que meu pai tinha tido um infarto fulminante. Eu falava com minha mãe. Sempre era uma conversa com muita culpa, dor, raiva.” Márcia nunca quis ler a carta de despedida que o pai deixou.

Os pais de Marina seguem buscando novas formas de conceber o finamento da filha. No dia do encontro no Vita Alere, em novembro, eles colocaram no ar um site onde desabafam em textos e orientam quem tem dúvidas sobre o assunto. Terezinha nomeou o site “nomoblidis.com” para realizar um desejo da filha, expresso em seu perfil no WhatsApp. Marina escreveu: “Si us plau, no m’oblidis”. Terezinha descobriu que a frase, em catalão, quer dizer “Por favor, não me esqueça”. Na quarta-feira em que a morte de Marina completou um ano, Terezinha e Joseval inauguraram um grupo de apoio a sobreviventes enlutados em São Bernardo do Campo. A reunião estava marcada para as 20 horas. Uma chuva torrencial caiu pouco antes. Nos posts de divulgação do grupo, Terezinha cometera um erro no endereço. O grupo tinha tudo para ficar esvaziado. Dezoito pessoas apareceram. Foi a primeira vez que a mãe de Terezinha, avó de Marina, falou em público sobre a perda da neta, encorajada depois de ouvir outra avó: “Eu nunca mais tive um dia de alegria”. Um rapaz que perdera o filho recentemente pegou o telefone de Joseval e ligou no sábado seguinte, querendo apenas ter alguém com quem falar. Manter-se ocupada com os preparativos do grupo ao longo daquela quarta-feira ajudou Terezinha a não sucumbir diante da tristeza e da saudade. “Bálsamo ou anestesia, não sei. Mas foi reconfortante.”







Nenhum comentário:

Postar um comentário