domingo, 29 de março de 2020

"Sobre o que tenho aprendido com sobreviventes enlutados"

Trechos do capítulo que escrevi no II Volume do livro "Histórias de Sobreviventes do Suicídio", do Instituto Vita Alere.


"Quando fui convidada pela Karen Scavacini em 2016 para ser uma das colaboradoras do Instituto Vita Alere, comecei a me aproximar das vivências das pessoas enlutadas por suicídio que participavam dos grupos de apoio e esta tem sido uma das experiências mais transformadoras da minha vida. Ao facilitar, junto à psicóloga Elis Regina Cornejo, os grupos de apoio do Vita Alere que acontecem na Vila Mariana (do início de 2017 até dezembro de 2018) e em Santos (de 2017 até o momento), pude perceber as especificidades do luto por suicídio, mencionadas na literatura, porém muito mais profundas e complexas na realidade (p. 28).

"Certa vez, ouvimos de um dos participantes a seguinte frase: “Somos os amigos que não gostaríamos de ter”. Isto porque o fator universal que os une é ter sofrido o impacto do suicídio de um ente querido. Porém, uma vez que não é possível desfazer o que aconteceu, a maioria refere o quanto se beneficia destes encontros nos quais é possível falar sem medo de julgamentos, em um local no qual todos os sentimentos são validados e acolhidos. Algumas pessoas que nunca participaram de um grupo de apoio ao luto podem pensar que ouvir as histórias de outros enlutados apenas aumentaria o sofrimento de cada um. Mas, assim como um provérbio chinês ensina: “Uma alegria compartilhada transforma-se em dupla alegria; uma dor compartilhada transforma-se em meia dor”. Ao encerrar cada reunião, os participantes devem dizer algo que expresse como eles estão saindo do encontro, e ouvimos na maioria das vezes palavras como “Gratidão”, “Aliviada”, “Acolhido” e “Esperança”. Uma parcela significativa dos participantes frequenta as reuniões regularmente, portanto vão também criando laços entre si ao longo dos encontros. Do sentimento de desamparo e tristeza de onde parecia que não nasceria mais nada, surgem novas possibilidades de apoio, solidariedade, compaixão e empatia.

Os membros de um grupo coeso sentem afeto, conforto e um sentido de pertencimento no grupo. Eles valorizam o grupo e sentem que são valorizados, aceitos e amparados pelos outros membros. (YALOM E LESZCZ, 2006, p. 62). Tenho observado que ao contar sua história para os outros, a maioria dos enlutados consegue também ouvir-se. E um dos efeitos mais positivos que identifico no grupo é o momento no qual um sobrevivente enlutado acolhe a fala de outro e tenta acolhê-lo, sem julgamento. Ao oferecer o melhor que existe em si mesmo para o outro, muitas vezes o enlutado consegue posteriormente voltar este mesmo olhar de compaixão para si mesmo. Também penso que é uma experiência importante quando o sobrevivente, em meio à sua dor, sente-se incapaz de ajudar alguém ou de ter algo ainda dentro de si que possa ser doado ao outro; e, durante o encontro, muitas vezes percebe que oferecer uma palavra ou um olhar para alguém são gestos grandiosos, capazes de amenizar o sofrimento que é compartilhado. Estas experiências em grupo não poderiam ser vivenciadas na terapia individual e oferecem uma outra forma de favorecer a elaboração do luto. Mais do que uma vivência terapêutica, trata-se de uma experiência humana" (p. 61-62).

"Ao compreender que existe uma parte de seu ente querido que permanecerá sempre viva dentro de si mesmo, o enlutado vai aos poucos ressignificando sua perda. Quando o sobrevivente enlutado começa a trazer em seu relato mais conteúdos sobre o legado de quem partiu (memórias, histórias, saudades e adaptações graduais na vida que continua a seguir seu fluxo) do que a forma como a morte aconteceu, compreendo que o luto está sendo elaborado, no ritmo de cada um. Como Fine (2018), alguns sobreviventes farão as pazes consigo e com seu ente querido em nome do amor: Eu nunca saberei o que ele estava pensando, há quanto tempo tinha planejado sua morte, por que tirara a vida naquele momento específico e, o que era mais doloroso, o que eu poderia ter feito de diferente para salvá-lo. Aos poucos, comecei a compreender que, para aceitar sua morte e celebrar sua vida, eu teria que perdoar nós dois pelo que tinha acontecido. (FINE, 2018, p. 20). Para finalizar, o que tenho aprendido com os sobreviventes enlutados por suicídio é que nós, seres humanos, nos fortalecemos quando apoiamos um ao outro e que o amor realmente é mais forte do que a morte. Sigo acreditando que o melhor da vida são os encontros" (p. 64). 



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