domingo, 8 de maio de 2016

Sobre os fluxos administrativos imutáveis, frios e impessoais que não comportam seres humanos



"Desculpa, Doutora..?"

"Júlia. Só Júlia." E fui mexer na tela do computador pra ver se tinha esquecido de atender algum paciente.

"Meu nome não tá aí. Eu sei que eu tô pedindo uma coisa que não devia, mas é que tô trabalhando muito e, por isso, não consegui vir durante a semana. Me desculpa. Eu tô sem meu remédio de dormir. Preciso muito que você renove a receita pra mim. Pelo menos até eu conseguir marcar consulta com o médico da minha equipe."

"Tudo bem. 'Senta'."

"Você vai fazer????"

"Vou, uai."

"Nossa. Eu já vim preparada pra pedir pelo amor de Deus."

"Não precisa. Eu vou fazer agora. Só gostaria que você também me entendesse. Vou renovar por 15 dias pra dar tempo de você marcar com seu médico e seguir esse acompanhamento com ele. Ok? Essa medicação precisa ser presceita com muita cautela. É uma situação séria."

"É tão triste ter que calçar a cara pra ficar pedindo esses favores. Uma vez eu tentei parar mas fiquei muito mal. Já tem 3 anos que eu uso. Por isso que vim. Desculpa."

"Não estou te fazendo um favor. Esse é o nosso trabalho. Não precisa pedir desculpa. Esse remédio causa dependência. Não pode parar de usar de uma vez. Por isso que estou renovando e te encaminhando para o seu médico de referência. Ele vai te orientar sobre essa possível retirada."

"Muito obrigada."

"Sua receita. Só mais uma coisinha. Esse remédio tá preenchendo um buraco aí dentro, né. Se tirar o remédio sem olhar pro buraco, não sei não... Respira fundo, dá uma olhada nesse vazio, vê bem o tamanho dele, procura alguma coisa pra colocar lá. Depois, reavalia o remédio."

Seus olhos se encheram de lágrima.

"Tenho vergonha disso. É uma droga. Só que legalizada, né? Tenho muita vontade de parar. Várias pessoas da minha família ficam me criticando, mandando eu parar."

"Essas pessoas também estão cheias de buraco, boba! Elas podem não preencher o buraco delas com remédio, mas elas as vezes estão usando chocolate, comida, marido, religião. Cada um enche o vazio com o que dá conta. Não fica envergonhada, não. Você tá usando o recurso que você tem nesse momento. Isso é LEGÍTIMO! Respeita seus limites. Respeita seu corpo. Vai no seu ritmo."

"Que bom ouvir isso. Muito obrigada"

E foi embora chorando.

E chega a moça da administração:

"Doutora. Desculpa! Eu disse a ela que hoje não era dia de renovar receita. Mas eu me distraí um minutinho e ela entrou aqui. Me desculpa."

"Sem problemas. Pode se distrair sempre. Fecha a porta aí e vambora pra praia"

Texto da (fantástica) médica da Família, Júlia Rocha, em seu Facebook. 

02 de abril de 2016.



Nenhum comentário:

Postar um comentário